Quando se perde a razão
Costa perdeu a razão contra Marcelo ao servir-se de expedientes irrisórios e pequenos agentes do sectarismo partidário para se queixar da deslealdade presidencial.
Por vezes, perde-se a razão mesmo quando aparentemente não faltam razões para tê-la, como acontece com os independentistas catalães. Razões históricas, culturais, sociais, até económicas (embora estas sejam contraditórias e conflituais, conforme vimos com a saída de milhares de empresas da região desde as recentes ameaças de ruptura com o Estado espanhol). Só que, no actual quadro europeu e internacional, uma declaração de independência unilateral por parte de uma região autonómica integrada em Espanha nunca poderia ser aceite pacificamente e as suas consequências seriam sempre perigosamente imprevisíveis.
Além disso, por mais legítima que seja a paixão nacional de uma parte dos catalães, tudo indica que uma maioria da população, mesmo entre os adeptos da independência, não votaria a favor de uma ruptura incondicional e em conflito aberto com Espanha. Infelizmente, a prova dos factos nunca pôde ser feita em definitivo por culpa de ambas as partes: porque Madrid não aceitou oportunamente a reformulação do Estado espanhol numa arquitectura federal e porque os vários sectores do catalanismo militante – da direita à extrema-esquerda – não conseguiram construir uma plataforma coerente que permitisse uma solução viável para o problema. Aliás, os sucessivos avanços e recuos no comportamento de Puigdemont, o presidente da Generalitat, ilustram a inconsequência política das forças independentistas.
A única alternativa que travaria Madrid seria a convocação de eleições antecipadas – que não poderiam ser recusadas pelo poder central e reforçariam, pelo menos, o estatuto da autonomia catalã, abrindo uma porta de saída para a crise. Ora, ao ser incapaz de dar este passo, Puigdemont comprovou a sua falta de estatura de estadista enredado na sua teia, e permitiu a Rajoy fazer o que ele deveria ter feito, enquanto a Catalunha mergulhava num estado de confrontação interna sem precedentes – e sem horizontes à vista. É o que acontece quando se perde a razão.
Esta foi, aliás, uma semana em que também em Portugal, embora por motivos bem menos graves, a mesma frase poderia repetir-se. Costa perdeu a razão contra Marcelo ao servir-se de expedientes irrisórios e pequenos agentes do sectarismo partidário para se queixar da deslealdade presidencial. Ora, o que aconteceu foi que o Governo de Costa se mostrou incapaz de responder com oportunidade, eficácia e sensibilidade à tragédia dos fogos – às suas consequências humanas, sociais, económicas e ecológicas.
Marcelo limitou-se a ocupar, com sentido de Estado e humanidade, o prolongado vazio que o Governo deixara arrastar até quase ao limite do suportável. Ao contrário do que o primeiro-ministro teria desejado, não faria sentido que Marcelo aguardasse mudo e quedo pela concretização das promessas de remodelação governamental e tomada de medidas que tinham sido sistematicamente adiadas, apenas para salvar a face de Costa e da sua equipa. Não é isso que se espera de um Presidente – nem era isso o que as populações em sofrimento esperavam dele, como aliás se comprovou.
Finalmente, esta foi também a semana em que as mais altas instâncias da Justiça portuguesa se arrastaram penosamente no temor de reconhecer uma das vergonhas mais intoleráveis dos últimos tempos, quando um juiz da Relação do Porto e uma sua colega subscreveram uma sentença digna das mais tenebrosas tradições ao difamarem uma mulher "adúltera" agredida barbaramente por dois homens. Neste caso, o juiz em causa não se limitou a perder a razão no sentido mais literal do termo, o que recomendaria talvez o seu internamento psiquiátrico urgente. É um ser desprezível que perdeu moralmente o direito de julgar quem quer que seja.