Quando o museu é teatro e o teatro é ritual
A colecção de arte africana de José de Guimarães é o ponto de partida do Auto das Máscaras que o Teatro Oficina construiu com mais de uma centena de pessoas. É este sábado e domingo, no centro de artes que leva o nome do artista plástico, em Guimarães.
Quando entrou pela primeira vez no Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG), João Pedro Vaz sentiu “um impulso performativo”. Tinha diante de si a colecção de máscaras africanas do artista plástico que é patrono daquele museu vimaranense. “Há uma beleza naquela sala e, ao mesmo tempo, uma certa tristeza, porque aquelas máscaras estão ali imóveis." Quis dar-lhes vida. E, não podendo usá-las directamente, pensou num ritual.
Chamou-lhe um auto, inscrevendo o espectáculo, que se estreia neste fim-de-semana, na tradição popular, antiga, do teatro como ritual comunitário. Auto das Máscaras será apresentado dentro do próprio CIAJG e pretende ser isso mesmo: “uma convocação do território para vir criar um ritual inspirado por aquelas máscaras”.
Muitas das máscaras da colecção de José de Guimarães estão associadas a rituais de passagem, o que levou João Pedro Vaz a convidar um grupo de Velhos Nicolinos, representantes da tradição das festas Nicolinas, em que antigos e actuais estudantes do ensino secundário da cidade se reúnem todos os anos, entre o final de Novembro e o início de Dezembro. A festa é marcada pelo uso ritualístico de percussões tradicionais que são um dos aspectos mais visíveis de uma mitologia própria, associada aos ritos de Inverno. “É o grande ritual de passagem da cidade e isso fez uma ligação óbvia”, explica ao PÚBLICO o director do Teatro Oficina.
É aos Nicolinos que cabe o momento de “explosão” do Auto das Máscaras, a partir do qual o espectáculo se precipita para a black box do CIAJG, onde o espectador encontrará a chave de leitura da peça. O público será guiado pelo espaço do museu pela Outra Voz – um coro comunitário criado no âmbito da Guimarães 2012, que desde então tem mantido um trabalho intenso de criação própria em colaboração com outros artistas –, que o encenador convidou a participar de raiz no espectáculo. Os músicos Carlos Correia e João Guimarães, que dirigem o coro, são creditados como co-criadores, juntamente com a coreógrafa Joana Castro, responsável pelo movimento.
Música e dança são convocadas para um espectáculo de teatro com muito pouco texto. “É o espectáculo com menos texto que fiz até hoje”, sublinha João Pedro Vaz. Há apenas alguns “farrapos” de palavras, retiradas de um caderno sobre máscaras de Teixeira de Pascoaes, haikus de Matuso Bashô e alguns contributos dos próprios participantes.
Envolver o território
Chegado a Guimarães para dirigir o Teatro Oficina, depois de nove anos à frente das Comédias do Minho, João Pedro Vaz vinha com uma missão bem definida: envolver o território no trabalho da companhia de teatro da cidade.
No primeiro ano, trabalhou numa cartografia que permitiu começar a criar ligações entre os 14 grupos de teatro de amadores no concelho, o curso de teatro da Universidade do Minho e os 50 participantes anuais das Oficinas do Teatro Oficina. Também começou a pensar em colaborações com os vários espaços culturais da cidade que, tal como o CIAJG, a companhia de teatro ou o Centro Cultural Vila Flor, são dirigidos pela cooperativa municipal de cultura A Oficina.
Em Junho, a companhia já tinha apresentado noutro museu, a Casa da Memória, Álbum de Família, construído a partir da colecção de fotografia da associação de defesa do património Muralha. Este sábado e domingo (21h30) ocupa o CIAJG juntamente com os mais de cem intérpretes que fazem o Auto das Máscaras.
“O centro tem esta abertura conceptual, com um permanente convite ao corpo e à performatividade”, contextualiza o director-artístico do CIAJG, Nuno Faria, que aceitou “entusiasmado” o desafio de João Pedro Vaz para esta colaboração. “Este é o tipo de cruzamentos pelos quais anseio há muito tempo”, sustenta, lembrando que o CIAJG já tinha ensaiado um convite à comunidade em Objectos Estranhos, a exposição que colocou espólios de instituições e particulares de Guimarães em diálogo com as obras do museu, na segunda metade do ano passado.
Agora, além da abertura do CIAJG ao espectáculo do Teatro Oficina, os dois directores artísticos articularam também a sua programação. Na véspera da estreia do Auto das Máscaras, o museu inaugurou o seu novo ciclo expositivo – que se prolongará até ao início de Fevereiro do próximo ano – com duas mostras construídas inteiramente no feminino. Extática Esfinge é uma colectiva com obras de Adriana Molder, Andrea Brandão, Carla Filipe, Catarina de Oliveira, Laetitia Morais, Sara Costa Carvalho, Marta Wengorovious, Dayana Luca e Sara Bichão que se apresenta como a segunda parte de Oracular Spectacular (2015). A mostra é dedicada ao desenho enquanto prática visionária, oracular e animista.
O animismo é também um dos elementos centrais no trabalho de Mumtazz, “artista de culto” a quem o CIAJG dedica aquela que é a sua primeira exposição antológica. Nascida em Lisboa em 1970, Mumtazz estudou na AR.CO e Performance School do Art Institute of Chicago, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian.
Ao longo do seu percurso, o seu trabalho foi sempre circulando fora do circuito comercial e das galerias. “É uma artista muito respeitada e influente, mas pouco conhecida do grande público”, explica Nuno Faria. O animismo e o xamanismo cruzam-se com a contracultura numa obra que cruza múltiplos suportes e linguagens: da poesia, ao som, passando pelo bordado, a fotografia e a instalação.