O teatro de Tiago Rodrigues está sujo de realidade
Depois de uma muito elogiada estreia absoluta em Avignon, Sopro mostra-se em Lisboa, no Dona Maria II. Em palco, a história de um ponto de teatro dinamita fronteiras entre realidade e ficção. Ponto de apuramento da linguagem teatral de Tiago Rodrigues, é um momento celebratório.
Pela primeira vez em muitos anos, logo após uma estreia Tiago Rodrigues não se viu tomado pelo ligeiro desconforto a que equivalia a ansiedade de começar a elaborar mentalmente os possíveis caminhos da sua próxima peça. Não se apanhou a abrir e fechar gavetas à procura das ideias que iam ficando sempre presas ao papel e sem autorização para se elevarem na transformação em textos para o palco. Nenhum desses esboços lhe parece agora entusiasmante o suficiente para nele investir as suas forças e a sua energia criativa de imediato. Mas essa ansiedade ausente tem várias justificações lógicas, combinadas para lhe garantir um momento de distensão e de reflexão sobre o que se seguirá no seu teatro.
Por um lado, as suas funções renovadas de director artístico do Teatro Nacional Dona Maria II (iniciou em Setembro o derradeiro ano do seu primeiro mandato, mas a continuação no cargo por mais três anos foi já anunciada) exigem-lhe o desenho das próximas três temporadas e bem como a consolidação do modelo que começou a desenvolver em 2015. Por outro lado, a contínua circulação nacional e internacional das suas criações By Heart, António e Cleópatra e Entrelinhas durante os próximos anos parece assegurada, juntando-se uma digressão de pelo menos dois anos dedicada a Sopro, a peça que tem estreia nacional no Dona Maria II a 2 de Novembro – ficando em cena até 19.
Talvez mais importante do que as anteriores razões, no entanto, parece ser a consciência de que Sopro funciona como peça síntese de muitas das suas obsessões artísticas e sugere o fim de um ciclo criativo. Não se trata, portanto, de falência de ideias, de uma necessidade de abrandar o ritmo ou de se sentir cansado. “Estou naquele lugar feliz de não saber bem o que vem a seguir, algo que não me acontecia há algum tempo”, confessa Tiago Rodrigues ao Ípsilon. “Sinto que a reflexão que devo fazer neste momento é outra, tenho de me perguntar mais profundamente o que quero realmente fazer a seguir. Iniciei algumas pesquisas, comecei a fazer algumas leituras, encetei algumas conversas com artistas, mas pela primeira vez não sinto a ansiedade quase bulímica de já estar a trabalhar no espectáculo seguinte. Interessa-me muito voltar a encontrar pessoas que não conheço, trabalhar com estudantes ou artistas mais novos, fazer uma pesquisa com quem está a dar os primeiros passos em teatro e descobrir novos cúmplices.”
Em parte porque precisa de destruir certezas. O autor e encenador dos próprios textos – quando não também intérprete – gosta de “partir para cada criação como um aprendiz, para estudar uma coisa nova, examinar um tema inédito [no seu percurso], aprender sobre um determinado universo de conhecimento”. “Isso implica colocar-me na situação às vezes frustrante, mas muito entusiasmante, de não saber como se faz. Para evitar constantemente a fórmula e colocar-me, na medida do possível, face ao desconhecido. Claro que face ao desconhecido recorremos aos nossos truques, aos nossos hábitos e ao nosso vocabulário, mas é muito diferente de estar face a um processo de trabalho em que sei exactamente o que deve e vai acontecer até ao dia da estreia. Quero estar noutro lugar. Quero descobrir novas ferramentas para lidar com esse desconhecido e é em grande parte por isso que decidi fazer teatro, para viver a vida como alguém que não sabe como fazer o que faz.”
Essa é uma das razões fundamentais para que a criação de Sopro se lhe tenha revelado tão saborosa quanto assustadora. No ponto de apuramento da sua linguagem teatral em que a nova peça o encontrou, apesar das novidades de que se rodeou, sentiu-se “com uma certa mestria” no processo de construção, num lugar de “talvez já saber exactamente como fazer”. E esse é um forte indicador de que terá de pôr uma pedra nesta engrenagem.
Uma falsa realidade
Sopro é uma ideia antiga, mas que Tiago recuperou assim que começou a circular pelos corredores do Dona Maria II enquanto director artístico. Naquela casa trabalham os dois últimos pontos – aqueles que sopram o texto aos actores se a memória lhes falhar em cena – em actividade em Portugal e dos poucos resistentes em toda a Europa. Já em 2010 Tiago desafiara pela primeira vez Cristina Vidal, ponto no Teatro Nacional há 25 anos, a sair da invisibilidade e ocupar o palco, a tornar-se o centro de um dos seus espectáculos. Só aconteceu agora, em 2017, como resposta de Rodrigues à encomenda do histórico e influente Festival de Avignon para apresentar na cidade francesa uma criação inédita.
Se Cristina Vidal está no centro da peça, na condição de ponto, Tiago põe-na a orbitar em torno de actores e actrizes como Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Beatriz Brás (do colectivo Auéééu Teatro), Sofia Dias e Vítor Roriz (os bailarinos e coreógrafos que interpretam a adaptação do shakespeareano António e Cleópatra por Rodrigues, cuja presença em palco reforça a forma como a palavra e o movimento se interligam e namoram) através dos quais vai relatando as suas histórias e as suas memórias. Só que “a história não bate certo com a biografia da Cristina Vidal nem com a história do teatro português”, admite o autor, reconhecendo que a partir da recolha dos relatos da ponto do Nacional urdiu depois uma efabulação em que os factos têm o seu lugar mas não condicionam nem dominam cada cena.
Essa manipulação da realidade em favor do emergência de uma ficção é, de resto, uma das linhas de força mais evidentes no teatro de Tiago Rodrigues. E isso vem já de trás. Em Se Uma Janela se Abrisse (2010) imagens reais de um telejornal das 20h00 da RTP, apresentado por João Adelino Faria, eram dobradas por actores que corrompiam as notícias com um tom poético, entrando depois na cabeça do pivô, trocando as voltas aos domínio do público e do privado; em Três Dedos Abaixo do Joelho (2012), Rodrigues colava frases dos censores de teatro durante o período do Estado Novo para construir uma exposição do absurdo dos atentos à liberdade em Portugal, ao mesmo tempo que Isabel Abreu e Gonçalo Waddington recriavam algumas das cenas cortadas, parodiavam e dinamitavam os relatórios censórios; em By Heart (2013), a história da sua avó Cândida, que lhe pedira um livro para decorar quando perdia a visão, estimulava toda uma reflexão e recolha de textos acerca da relação entre literatura e memória.
Quando Tiago Rodrigues fala de Sopro como uma “peça síntese” daquilo que tem vindo a explorar no seu teatro nos últimos anos, não é necessário um especial golpe de imaginação para encontrar vasos comunicantes entre vários dos seus textos, ligando-os através desta relação porosa entre realidade e ficção, de um diálogo recorrente com grandes obras do cânone literário e dramatúrgico (era o que acontecia em Três Dedos e By Heart, mas também em Bovary, António e Cleópatra ou Como Ela Morre), de um constante braço-de-ferro entre público e privado, político e íntimo, e de uma persistente problematização da memória.
Em Sopro, os textos canónicos que também alimentam o seu teatro são trazidos à cena pelos episódios rememorados pela ponto. Através da recapitulação dos momentos da sua carreira em que foi chamada a intervir, com maior ou menor estrépito, revelando ou não a sua discreta presença, devolvendo “o pensamento, o sentido e o gesto”, ouve-se em Sopro, “quando o actor se relembra de que é mortal, que não é a personagem perfeita, mas um corpo emprestado e falho”, é então que cenas de Tchékhov, Molière ou Racine irrompem pela peça e suspendem (ou se entrelaçam) com o desfiar de histórias passadas.
A peça lida a todo o momento, e em simultâneo, com dois níveis diferentes de memória. A memória dos actores, uma memória funcional e comum a qualquer habitante deste mundo, construída, equivocada, abastardada, sobrevivente durante o decurso de uma vida, até que se apaga de supetão ou faseadamente, só podendo superar a morte no caso de ser transmitida a terceiros; mas também a memória histórica, aquela que diz respeito não a um indivíduo mas a um colectivo, uma certa oficialização do passado. Tais memórias são convocadas para Sopro, argumentando Tiago Rodrigues que “a peça está carregada de História mas também de interpretação pessoal, experiência pessoal e de um ofício que a cultura livresca não pode transmitir”. “Está carregada sobretudo de uma experiência humana, da partilha, da transmissão, que me parece não ser a do arquivo. São memórias reinterpretadas, adulteradas, truncadas, incompletas, mas que por isso permitem uma reinvenção e é a imaginação que preenche os vazios dessas memórias. Ou seja, o espectáculo tem alguma preocupação histórica, porque houve alguma pesquisa a alimentá-lo, mas não tem qualquer pretensão a ser rigoroso – pelo contrário, está preocupado em ser indisciplinado.”
É uma indisciplina libertadora e explosiva a um só tempo. Libertadora porque rejeita um respeito quase higiénico pelos factos, não se limita a um guião escrito por terceiros e a que teria de obedecer cegamente se quisesse não se desviar do rigor; e explosiva porque segue o seu próprio caminho, indiferente às traições do passado que essa opção possa acarretar. A descoberta de um “vocabulário” próprio para a peça, aliás, foi sempre um dos objectivos fundamentais de Tiago Rodrigues. E na noite de estreia absoluta em Avignon era essa felicidade que constatava: “Acho que inventámos uma língua e uma gramática próprias, singulares deste espectáculo, e isso interessa-me sempre muito. Gosto que cada espectáculo seja como aprender uma língua nova, as suas regras e como violá-las, perceber que há uma língua que ainda não falávamos e através da qual agora nos podemos exprimir.” No caso, a descoberta correspondeu a uma língua falada com delicadeza, marcada por uma melancolia que não degenera em nostalgia, e que dança continuamente em torno da ideia de fim.
O escudeiro e o cavaleiro-andante
Criada para se estrear em Julho passado no Festival de Avignon, no espaço do Cloître des Carmes, Sopro teve uma entusiástica recepção crítica por parte da imprensa francesa. Agora chega a casa. Foi no Teatro Nacional Dona Maria II que Cristina Vidal entrou num teatro pela primeira vez, aos cinco anos, levada pela tia, e é ali que vem exercendo a profissão de ponto há 25 anos. As histórias que preenchem a peça pertencem ou são sugeridas, em boa parte, por aqueles corredores e por aqueles bastidores. E foi ali que Sopro teve as primeiras sessões de trabalho e Tiago Rodrigues se deixou fascinar pela qualidade de movimento de Cristina, colocando-se sempre num ponto em que não roube visibilidade aos actores nem lhes diminua a mobilidade em palco.
A presença em palco de Cristina Vidal, de facto, parece arrastar consigo um sentido político muito para além da representação do seu próprio papel: surge como alguém que não permite o esquecimento, como uma figura de resistência e de compromisso absoluto pela manutenção da memória, e alguém que cria um enorme espaço para a escuta, inteiramente disponível para o que os outros dizem. “Há uma humildade na escuta”, reforça Tiago Rodrigues, “num gesto que não é de submissão, mas de atenção, de alguém que trabalha na sombra para que o outro esteja no centro.” É algo que contraria o sentido dos nossos dias, de um discurso ininterrupto, de vozes que se atropelam e em que os megafones colocados diante de cada boca ou de cada teclado produzem um extenuante arrazoado de opiniões. A ponto escuta apenas, fala através dos outros, cumpre “uma função muito romântica” que o autor compara à de um escudeiro para com o seu cavaleiro-andante. “O escudeiro, pelo menos nos bons romances de cavalaria, está ali porque acredita no seu cavaleiro-andante e porque o escolheu – não o contrário. Tal como a Cristina escolheu ser ponto e é feliz a assistir os actores e as actrizes com quem trabalha.”
Esta mulher que veste de preto para acentuar a palidez de quem nunca esteve sob os holofotes, que orbita em torno dos actores colocando-se sempre na sua sombra, protagoniza (quase) silenciosamente Sopro e ela, que sempre foi altruísmo e sacrifício em favor de outros e jamais sonhou em pisar um palco, vai passar os próximos dois anos a subir àquele lugar em Portugal e em vários países estrangeiros – em Paris, no Festival d’Automne de 2018, a peça fará uma temporada de um mês no Théâtre de la Bastille – e a tentar não ser vista nem ouvida. Tudo isto porque o estatuto crescente de Tiago Rodrigues no plano internacional, e em França em particular, tem vindo a cimentar-se, com a presença recorrente das suas últimas obras nalgumas das grandes salas do país, a produção da sua versão francesa de Bovary (com elenco local e encenação do próprio), a recente versão de Tristeza e Alegria na Vida das Girafas dirigida por Thomas Quillardet e também estreada no último Festival de Avignon, a publicação de muitos dos seus textos pela influente editora Les Solitaires Intempestifs (onde publicam Claude Régy, Tim Crouch, Dimitri Dimitriadis, Rodrigo García e outros nomes cimeiros da dramaturgia europeia contemporânea) e a muito notória ocupação do Théâtre de la Bastille durante três meses em 2016.
Já antes Tiago Rodrigues arregaçava as mangas e tratava de cuidar da internacionalização das suas peças, mas a partir de By Heart, criação pensada para a comemoração dos 10 anos da estrutura (Mundo Perfeito) que montou com Magda Bizarro numa cozinha da Amadora em 2003, tornou-se óbvio que teria de começar a pensar que, a cada novo espectáculo, já não estava apenas a criar para consumo doméstico, mas para um público além-fronteiras. Em parte também devido à sua portabilidade – em palco está apenas Tiago Rodrigues, naquele que é hoje o espectáculo que o mantém ligado ao trabalho de actor, e dez voluntários do público que o ajudarão a recitar o soneto de Shakespere que deu a decorar à sua avó Cândida –, By Heart foi conquistando público um pouco por todo o mundo graças a um dispositivo simples e inteligente que se alia a uma história de preciso impacto emocional, assim como à ideia de que a memória é uma poderosíssima arma de luta e reduto de dignidade contra todo o tipo de regimes opressores.
Espectáculo fortemente emblemático para Tiago Rodrigues, até pela exposição da sua história pessoal (numa realidade cujas doses só ele saberá se são assim tão generosas ou não), By Heart juntamente com António e Cleópatra e Bovary são as peças que mantém em circulação e nas quais se continua a rever e que continua a descobrir. “São espectáculos que estão vivos, o que é algo importante para mim”, diz, “porque às vezes não é o momento da estreia que os torna marcantes no nosso percurso, mas o tempo que vivemos com eles depois.” São também exemplos claríssimos do apuramento de uma linguagem que, sendo reconhecível, se tem metamorfoseado a cada novo passo do percurso e que o levaram até este Sopro que antecipa já, igualmente, como um marco decisivo na sua obra. Não só porque lhe vai dedicar mais dois anos e continuar a descobrir o muito que ali depositou, mas também porque, já o percebeu, culmina o crescimento de uma certa aprendizagem.
“Sinto-me um pouco como alguém que estava há muitos meses a tentar completar um daqueles puzzles de 10 mil peças, do qual já tinha terminado várias secções, e com a estreia do Sopro coloquei a última peça do puzzle”, compara. Há, por isso, algo de celebração em Sopro. Mas há também “qualquer coisa de perplexidade”. E agora?, pergunta-se. Desfaz o puzzle e começa de novo? Escolhe outro puzzle para montar? Desiste dos puzzles e dedica-se ao xadrez? Tudo boas questões que os próximos meses se encarregarão de responder. Sem ansiedade.