O “Gerês de Avintes”, um lugarejo abandonado que é uma quinta a céu aberto
Fica entre Vilar de Andorinho e Avintes, no trilho do Rio Febros, e é um paraíso ao lado da cidade. Mas a falta de limpeza florestal e o difícil acesso deixaram-no cair no esquecimento.
O código postal indica que estamos em Vila Nova de Gaia, mas chegar à Rua da Queimada é uma missão hercúlea para o comum transeunte e um desafio para qualquer GPS. A pouco mais de um quilómetro do centro de Avintes, há um povoado que se amontoa em torno do verde das margens do rio Febros. É sábado de manhã e não há ninguém na rua — só se ouve o correr do afluente que divide aquele lugar em duas freguesias, Avintes e Vilar de Andorinho, e o imperativo grasnar dos patos selvagens que o habitam. Alfredo Gonçalves, de 53 anos, chama-lhe o “Gerês de Avintes” e, embora só viva aqui há três anos, não se imagina a voltar para o centro da cidade. “Eu vou lá acima ao supermercado [de Avintes], mas estou logo morto para voltar cá para baixo”, conta ao PÚBLICO.
Mal pomos pé na rua estreitinha que dá acesso à casa de Alfredo somos denunciados pelo latido dos cães que acusam de imediato a chegada de quem é de fora. Os dois gatos também se mostram curiosos com quem ali passa, mas são os patos que se mostram menos tímidos mal ouvem a voz de Alfredo. Nadam apressados em fila indiana e convergem junto à ponte do rio — alguns voam logo da água para a ponte — para a habitual disputa de comida e afeição que Alfredo lhes leva diariamente. “Todos os dias tento ter pelo menos duas horas para dedicar aos animais”, explica, acrescentando que “eles são selvagens mas são tratados como se fossem domésticos”.
Os 48 patos, entre os quais se encontram maioritariamente patos-reais e patos domésticos (cuja plumagem é totalmente branca), nasceram todos ali. “Quando eu chego, eles apercebem-se que venho com o carro e então se trouxer sacas já sabem que vem alguma coisa para eles”, afirma. Alfredo Gonçalves sempre teve uma relação próxima com os animais, mas foi quando se escondeu da cidade que encontrou o sossego que precisava junto da natureza. “Sou hipertenso e há três anos que não tomo um medicamento, acredita?”. Não há como provar uma relação causal entre os dois acontecimentos, mas o bem-estar de Alfredo é notório. “Sinto-me muito mais calmo, isto é terapêutico”.
Alfredo Gonçalves vive sozinho, mas nunca está só. Enquanto atira os pedaços de pão aos patos, cumprimenta os vizinhos que saem cá fora para regar as plantas aproveitando o fresco da manhã. Um senhor vem à rua passear o cão e leva o cajado na mão, mas não há qualquer rebanho à vista. “[Parece estranho mas] é normal, porque os animais podem-se assustar com as cobras ou outros barulhos”, explica. Já houve quem tentasse, sem sucesso, levar os patos para criação em terreno fechado. “Eles estão bem aqui no seu habitat natural, a gente que vem aí ao domingo fazer caminhada e andar de bicicleta fica toda contente ao vê-los”.
Carteiro da freguesia vizinha
Tirando os moradores e as pessoas que percorrem o trilho do rio Febros, que se inicia nas traseiras do Parque Biológico de Gaia e termina junto ao cais de Esteiros, este é um lugar isolado que foi esquecido pelo resto do concelho. “Tivemos que ir pedir à Junta de Freguesia de Avintes que incluísse as nossas casas na rota de entrega de correspondência deles, porque o carteiro de Vilar de Andorinho não desce cá abaixo. Agora o carteiro de Avintes vem de mota por aí abaixo”, revela Alfredo Gonçalves.
A par do difícil acesso, a falta de limpeza do rio e da floresta é o grande problema do “Gerês de Avintes”. “De Inverno não se pode viver aqui por causa da humidade, da água infiltrada nas casas e do rio. De Verão vai-se vivendo, não deve haver sítio melhor para se viver”, afirma José Duarte, de 54 anos, acrescentando que “tem que ser quem vive aqui a cuidar das coisas”.
Enquanto funcionário da Câmara Municipal de Gaia, Alfredo Gonçalves tem ocupado a dianteira da luta pela limpeza da bacia que contorna as duas freguesias. “Há garrafas e plástico que não só poluem a água como prejudicam os animais. Já tive que abrir uma cova aqui para os patos terem mais espaço para nadar, porque havia pouca água”. Também é preciso limpar as matas, que crescem sem qualquer supervisão e onde a seca tem aumentado o risco de incêndio. “Há eucaliptos que estão a vergar cada vez mais e que são um perigo para quem vive aqui”, diz José Duarte, notando que a Protecção Civil está a par do caso. Também José lamenta o abandono do “pequeno paraíso” onde vive. “O meu filho sofre de ansiedade e melhora muito quando vem para aqui, até engorda um bocadinho”.
Se é verdade que o abandono toma conta do local, por outro lado há um sentido de comunidade fomentado precisamente pela falta de meios. “Aqui ajudamo-nos todos, ninguém passa fome. Um não tem comida para o cão vai buscar a casa do outro”, conta Alfredo. O “senhor dos patos”, como é conhecido nas redondezas e na confeitaria Que Delícia, onde vai buscar pão para dar aos animais, chega até a ir levar o cão do vizinho passear. “Se pudesse, levava todos os animais”.
Embora esquecida, a Queimada é uma quinta a céu aberto que se revela uma boa surpresa para quem faz o trilho do rio Febros e se depara sobretudo com um conjunto de casas e construções devolutas e lixo acumulado. Há, para além disso, uma Gaia rural pontilhada por tanques, moinhos e pontes que constituem vestígios da história e da economia de outros tempos.
Febros: um rio com passado, presente e futuro
Nascido no Parque das Corgas, em Seixezelo, o rio Febros é o último afluente da margem esquerda do rio Douro e percorre os 4,5 km do primeiro trilho homologado de Vila Nova de Gaia. Alberga um vasto património biológico e geológico que acusa a importância que teve outrora para a população local e que contrasta com o abandono do presente. Além de mover os moinhos da indústria da panificação, era no Cais de Esteiros que atracavam os valboeiros que transportavam a broa de Avintes. De acordo com a Câmara Municipal de Gaia (CMG), “o plano de valorização do trilho do rio Febros tem sobretudo sido centrado em toda a extensão que atravessa o Parque Biológico de Gaia, de Vilar de Andorinho a Avintes, sendo neste momento uma preocupação do executivo ir até à nascente logo que possível”. O município reconhece a dificuldade de intervenção naquela área, dado que existem “terrenos privados pelo caminho, pelo que são sempre processos mais morosos”.
De acordo com a comunicação feita por Nuno Oliveira, biólogo e antigo director do Parque Biológico de Gaia, em Fevereiro no 27º Fórum Avintense, em 1983 o rio encontrava-se em “muito bom estado ambiental” e tinha uma “boa qualidade da água” que se traduzia na presença de animais como a truta-de-rio, o barbo, o rato-de-água e a toupeira-de-água. A partir de 1985, o crescimento urbano e industrial “sem tratamento de efluentes ou com deficiente tratamento” fez com que a poluição motivasse o desaparecimento de grande parte da fauna piscícola.
Em 2003, a ETAR de Febros entrou em funcionamento e deu início ao tratamento das águas. Apesar das pontuais descargas de fossas, “a qualidade da água do Febros foi melhorando progressivamente” e reemergiram espécies como a lontra e o melro d’água. Contudo, agravaram-se problemas como a “impermeabilização crescente da bacia hidrográfica e a canalização das águas pluviais para o rio”, que têm causado “cheias mais repentinas e mais violentas e uma crescente erosão das margens”.
Têm sido vários os esforços no sentido de reabilitar o rio Febros e os terrenos marginais. Em 1999, foi apresentada no “Simpósio Internacional sobre Reabilitação de Ribeiras em Águas Urbanas”, uma proposta de criação de um corredor ecológico que previa a instalação de saneamento que permitisse criar um percurso pedestre sobre o rio e a cedência dos terrenos ao seu redor ao domínio público municipal, sendo que a CMG faria a sua gestão através de um órgão constituído para o efeito. Em Setembro de 2009, a revisão do projecto dava prioridade à instalação de um percurso pedonal e de um corredor ecológico.
As margens do Febros estão classificadas em Plano Director Municipal (PDM) como áreas de Reserva Ecológica Nacional (REN) e Reserva Agrícola Nacional (RAN). Em 2007, foi celebrado um protocolo entre a Administração dos Portos de Douro e Leixões (APDL) e o Parque Biológico que pretendia salvaguardar a flora e fauna local, mas cuja concretização não se efectivou. Em 2009, a CMG anunciou um investimento de 58 milhões de euros no Parque Natural das Encostas do Douro, mas o projecto foi abandonado e foi dada primazia à reabilitação urbana em freguesias como Avintes e Oliveira do Douro.