Porquê (só) agora o alarme com os recibos verdes ?
Quais os partidos na AR que terão a decência de submeter estas propostas no debate do OE 2018?
Na qualidade de investigador tenho dedicado grande parte do meu tempo às políticas sociais e às questões da equidade. É neste âmbito que pretendo dar o meu contributo para o debate que surgiu em torno das alterações fiscais dos recibos verdes, propostas no OE 2018.
1. A pergunta que me intriga é o porquê do só agora este alarme.
Vejamos. Publiquei um artigo (Público, 11 de Abril 2017) sobre a comparação das regras de IRS (retenção na fonte) e Segurança Social (escalões), demonstrando que em muitos casos os trabalhadores a recibos verdes, para além da ilegalidade da sua situação, estavam sujeitos a regras abusivas sem qualquer racionalidade económica, e a uma gritante injustiça social que ainda hoje me pasmo como não suscitou qualquer remorso na elite que tem acesso ao espaço mediático-opinativo:
Há pessoas que em 2017 foram multadas por não fazerem retenção na fonte, mesmo que o desconhecessem (antes da alteração em 2014, até aos 10.000 euros/ano tal não era obrigatório), quando na verdade estão sujeitas a uma taxa absurda de 25% mesmo que não tenham imposto a pagar!
– Qualquer pessoa a recibo verde que esteja a cumprir a lei, com um salário de 1.000 euros, está sujeita a um desconto mínimo de 250 euros para retenção na fonte, o que a somar às contribuições para a Segurança Social, que em função dos rendimentos do ano anterior pode variar entre os 124,06 e os 248,18 euros, perfaz um total de descontos na ordem dos 50%!
– Desta situação, os trabalhadores a recibos verdes com rendimentos inferiores a 10.335 euros/ano estão a receber abaixo do salário mínimo!
2. O artigo de Rui Tavares (Público, 16 de Outubro 2017) suscitou-me a necessidade de entrar neste debate. Primeiro, porque a realidade dos recibos verdes é muito diversa. Tanto pode ser o "empregado de forma ilegal" numa determinada entidade que aufere 750 euros/mês (caso de muitos licenciados) por mês, como o "profissional liberal de renome", que aufere 200.000euros/ano por conta própria. Segundo, porque para mim, seguindo um princípio de equidade, o ponto principal não pode ser a preocupação com a tributação dos recibos verdes que auferem rendimentos acima dos 16.416 euros/ano, cerca de 10% (a crer nos dados das Finanças), ignorando a realidade dos restantes 90%. Terceiro, invocar a Cidadania é sempre uma faca de dois gumes (nós e os outros). E eu acrescentarei um terceiro (os riscos morais).
Rui Tavares refere que os “Contribuintes de categoria B serão, mas não deveriam ser cidadãos de segunda categoria”. Compreendo, mas julgo que há que distinguir e explicar o que está em causa.
O problema está justamente nos falsos recibos verdes, cuja Cidadania está em causa quando sendo empregados e não profissionais independentes, não gozam da protecção social dos outros cidadãos porque lhes é negado o contrato de trabalho, e ainda estão obrigados a um conjunto de procedimentos “kafkianos” nas Finanças, e sujeitos a outras atrocidades, cometidas inclusive pelo Estado, como é o caso dos atrasos nos pagamentos, por vezes superiores a um ano.
Considerando as alterações propostas, para rendimentos acima dos 16.416 euros/ano, em vez do actual do regime simplificado, passará a vigorar uma espécie de regime intermédio. Admitindo que as regras serão adequadas, não haverá aumento de impostos. Pelo contrário, as reintroduções dos dois novos escalões representa um desagravamento fiscal. Representará sim um acréscimo da burocracia/deveres, pois passa a ser obrigatório justificar com factura a dedução das despesas profissionais até ao limite de 25% dos rendimentos.
Onde está, afinal, o problema? Arrisco uma terceira categoria, aqueles que, muitas vezes assalariados, são também ‘recibos verdes’ quando tal lhes confere uma vantagem fiscal. Alguém que declare rendimentos na ordem dos 100.000 euros a recibo verde, passa automaticamente a pagar impostos apenas sobre 75.000. Só que para além deste incentivo fiscal implícito, pode ainda ocorrer que as facturas das despesas dos profissionais sejam usadas como despesas da empresa, sendo como que deduzidas duplamente, com o prejuízo fiscal e risco moral que isso representa. Este sim, é um problema grave que existe também na Administração Pública...
Sou da opinião que um debate sério sobre os recibos verdes, independentemente das posições de cada um, não pode ignorar estas três dimensões. Mas num ponto estou totalmente de acordo com o artigo de Rui Tavares: é inadmissível que se trate da mesma forma rendimentos da categoria A e B. A razão é óbvia, mas convém recordar: ter um contrato de trabalho confere um nível de rendimento, regulação laboral, protecção social, pensão e confiança no futuro muito superior ao de quem aufira o mesmo rendimento a recibos verdes, sempre variável, sem qualquer garantia de continuidade no mês seguinte, recebendo apenas pelo serviço efectivamente prestado.
3. Tem sido difundida a ideia de que o actual Governo tem revertido as medidas tomadas no período da crise. Também no caso do factor de sustentabilidade da Segurança Social, já alertei num artigo (Público, 5 de Junho 2017) que tal não é verdade. Quero deixar este repto político:
- Com o desagravamento do IRS, serão revertidas as regras de retenção na fonte repondo a dispensa até aos 10.000 euros/ano?
- Para quando sujeitar os procedimentos da Administração Pública em matéria de recibos verdes à Autoridade para as Condições do Trabalho?
Veremos quais os partidos na AR que terão a decência de submeter estas propostas no debate do OE 2018.
Professor Auxiliar no ISEG – Universidade de Lisboa e Research Fellow no IPP