Vêm dos PALOP para tratamento médico e acabam “a pedir na rua”
Portugal recebe milhares de doentes dos PALOP. Em troca, as embaixadas têm de lhes dar um tecto. Mas alguns doentes ficam em pensões com ratos ou a pedir na rua. É um problema com anos, pouco parece mudar.
Maura Carvalho, 26 anos, está a tentar que o filho de três anos coma umas bolachas. Sentada na cama com os lençóis desalinhados na cave de uma pensão em Lisboa ela vai partindo o biscoito aos bocadinhos. O espaço é exíguo, mas dá para um pátio interior. Há outra cama com um colchão sem lençóis onde estão pousados uma mochila com um boneco, malas e casacos. Nenhuma das camas tem protecção para crianças. Está calor. Ele tosse. Tem um cateter no braço e anda prostrado por causa da febre. Já foi operado duas vezes em Cabo Verde.
Os dois chegaram a Lisboa no dia anterior à visita do PÚBLICO, na semana passada, para ele fazer tratamentos no Instituto Português de Oncologia (IPO). O bebé tem um tumor. Como estava constipado, não pôde ficar internado, foi mandado para “casa” com antibiótico. A “casa” era um quarto da Pensão Estrela do Chiado. “Está cheio de febre, nem consegue comer”, diz a mãe, visivelmente desamparada.
Maura Carvalho chora, enquanto vai tentando que ele coma. Deixou uma filha de seis anos em Cabo Verde. O quarto tem bolor nas paredes. Não tinha nem lençóis, nem toalhas. Na casa de banho não há tampo na sanita ou cortina na banheira. Os azulejos estão sujos. O conforto é zero. “Tenho dificuldade em ficar aqui, isto não tem higiene.”
Estamos perto do Largo Camões, uma das zonas com mais especulação imobiliária da capital e centenas de turistas por dia. Qual deles adivinharia que naquela pensão há esgoto a céu aberto, quartos tão abafados com a humidade que as paredes ficam com bolor, janelas partidas com sacos de plástico a fazer de vidro, pessoas sem condições mínimas de salubridade a pôr em risco o seu tratamento médico?
Estão alojados aqui sobretudo doentes cabo-verdianos que vieram ao abrigo de um acordo de cooperação com o Governo português. Há anos que a situação de doentes vindos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), as condições nas pensões onde alguns ficam ou o seu abandono são relatados pelos media. O actual Alto Comissariado para as Migrações já teve um programa de monotorização destes doentes, mas acabou (mais aqui).
Há um protocolo de cooperação com os PALOP, assinado há décadas, em que Portugal dá assistência médica e hospitalar, envolvendo vários ministérios (Saúde, Negócios Estrangeiros e Administração Interna). Os países asseguram o transporte ou o alojamento dos doentes — mas isso nem sempre acontece.
A grande percentagem vem de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, e os dados têm vindo a subir. Em 2016 o número ultrapassou largamente os mil doentes do plafond total acordado: chegaram 1735 doentes. Desses, 620 eram de Cabo Verde, 783 da Guiné-Bissau e os restantes de São Tomé e Príncipe (236), Angola (66) e Moçambique (30), diz a Direcção-Geral de Saúde (DGS). Isto é o dobro do estipulado nos casos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
A maioria chegou para tratamentos em ortopedia, cardiologia, oncologia, neurologia, otorrinolaringologia, gastroenterologia e pediatria. Mas a DGS não explica porque é que este número disparou, qual o balanço que faz deste acordo e não responde ainda à pergunta sobre se o facto de estarem em condições desumanas coloca em risco o seu tratamento.
Quanto ao orçamento para os cuidados de saúde com estes doentes, a Administração Central do Sistema de Saúde não respondeu em tempo útil.
E os direitos humanos?
“Posso limpar aqui?”, pergunta a mulher que leva uma mochila às costas na pensão do Chiado. Está com a esfregona porque a filha tem um hostel no andar de cima. Quer manter o edifício limpo para os turistas. No “entra e sai” os doentes deixam a porta escancarada, queixa-se. Abre um armário no hall do prédio, volta a fechá-lo. “As pessoas à noite entram aqui para se drogar. Está ali uma seringa”, aponta. “Aqui há um muito rato e barata.”
À entrada está uma placa de Alojamento Local. O prédio por dentro foi pintado, mas na pensão a tinta das paredes e do tecto descasca-se, os fios eléctricos estão a descoberto. O isolamento é inexistente e no Inverno o frio gela os corpos. Uns quartos são mais arejados, outros exíguos e servem duas pessoas. O ar pesado das divisões interiores contrasta com o dos quartos que dão para a rua, alguns deles com casa de banho.
Há quem tenha frigorífico e micro-ondas na minúscula divisão, onde se vai amontoando roupa, objectos, malas, fotografias, quadros. Uns doentes estão em tratamento por uns meses, mas outros não. Rosa Maria vive nesta pensão há sete anos, e há sete anos que faz hemodiálise, três vezes por semana. Por causa da procura do tratamento em Cabo Verde, a oferta não é suficiente. Então o Governo cabo-verdiano não pode dispensar a ajuda portuguesa.
Numa das visitas à pensão feita pelo Nu Sta Djunto, um grupo que ajuda pessoas em situação de carência, o fundador Mário Monteiro tenta saber o que os doentes precisam, ouve as críticas à embaixada e ao proprietário da pensão — este entra no edifício, mas foge quando vê o PÚBLICO. “Há um incumprimento dos direitos humanos. As entidades, como a embaixada, não estão a cumprir os seus deveres”, afirma Mário Monteiro.
Dias depois, ligamos a saber de Maura Carvalho. Um dos doentes diz que ela e o filho tinham ido para o lar do IPO. “Na pensão estava em muito más condições”, diz-nos Maura ao telefone, já no IPO. A sua voz está bem mais animada. Conseguiu ajuda no instituto através da assistência social. Sente-se acompanhada.
As pensões estão longe de ser a primeira opção da embaixada, afirma ao PÚBLICO o embaixador de Cabo Verde, Eurico Monteiro, em Portugal há uns meses. Não existe protocolo formal, mas a embaixada instala na Pensão Estrela do Chiado, e em duas outras pensões do mesmo proprietário em zonas centrais de Lisboa (Rua de São Paulo e Rua de São Bento) cerca de 100 doentes, a um preço difícil de encontrar noutro lado: 8 euros por quarto, por dia. “É compatível com o que podemos pagar”, explica.
O seu Governo apoia 700 doentes cabo-verdianos em Portugal, mas a maioria fica em casa de familiares, está internada nos hospitais ou arranja alojamento pelos seus próprios meios. Há também em Lisboa, desde Abril de 2012, um centro de acolhimento do Instituto Nacional de Previdência Social de Cabo Verde, para 40 pessoas. “Reconheço as limitações [financeiras]. Mas também sei que podemos fazer um pouco mais, podíamos estar mais presentes, aparecer mais vezes. É uma crítica legítima.”
O orçamento de Cabo de Verde para os doentes no estrangeiro é de 5 milhões de euros. A subvenção por doente, ao abrigo da promoção social, é de quase 250 euros por mês, para pagar alojamento e alimentação. Têm ainda assistência medicamentosa e há meses que os doentes das pensões recebem almoço. Muitos vivem de apoio de bancos alimentares. As condições de habitabilidade estão longe de ser adequadas. “Isto é um colapso para os doentes”, diz o cabo-verdiano Pedro Lopes, 71 anos. “Mas temos de ficar, porque não podemos dormir na rua.”
“Andei a pedir na rua”
Na Rua de São Bento fica a Pensão Madeira. Aqui uma recepcionista não deixa subir para ver os quartos. A doente Fátima Lopes, no rés-do-chão, está em cadeira de rodas num quarto mesmo ao lado da cozinha. Divide-o com a filha, a sua acompanhante. Há roupa e objectos a monte, cai água das infiltrações do andar de cima que é recolhida por um garrafão de água. Num dos aparelhos eléctricos que tem no quarto “Fatinha”, como se apresenta, pôs um tacho onde ferve o seu almoço.
A casa de banho, comum para quem está no andar de baixo, é um espaço frio e despido. Nesta residência há uma sala de estar com sofás, mas a cozinha não tem fogão, não tem armários, está abandonada.
Quando entrou pela primeira vez numa destas pensões, Teresa de Noronha ficou “em choque”. Percebeu que nenhuma delas “tinha condições para receber doentes”. Em 2007 fundou a Associação Girassol Solidário, que hoje apoia os doentes cabo-verdianos que estão nas pensões e tem um protocolo com a embaixada para gerir duas casas onde estão cerca de 19.
Com dois técnicos, e uma rede de 15 voluntários, só trabalha com cabo-verdianos. Consegue assegurar a assistência a todos. A gestão de pessoas nem sempre é fácil, porque se trata de convívio entre pessoas que não se conheciam, mas tentam encontrar uma forma de diminuir conflitos.
“O protocolo da saúde cobre bastante bem a parte médica, só que deixa a descoberto a situação social e humanitária”, critica. Certo é também que muitas destas pessoas morreriam, se não tivessem sido enviadas para Portugal, acrescenta.
A Girassol vai seguindo os doentes, tem um banco de roupa, banco alimentar, actividades. Está a tentar arranjar mais alojamento para tirar as pessoas das pensões. “Se encontrarmos dez casas, cada uma para dez doentes [cabo-verdianos], resolvemos o problema.”
Mas há doentes como o guineense N’dine Bioga, 41 anos, que ficam entregues à sua sorte. N’dine Bioga teve um acidente de trabalho enquanto funcionário ao serviço do Estado guineense, em 2013. Ficou com um problema crónico na bexiga. Em Bissau não havia meios para se tratar no hospital. Chegou a Portugal em 2015. Foi operado duas vezes e ainda não sabe quando os médicos lhe darão alta para regressar.
De instituição em instituição, tem conseguido ajuda para comprar os medicamentos. Também não tem dinheiro para os transportes públicos e é por isso que às vezes falha o levantamento de alimentos. “Andei na rua a pedir”, conta, emocionado, a chorar.
Agora aluga um quarto na linha de Sintra, apoiado pela Segurança Social. Tece duras críticas à embaixada da Guiné-Bissau: “Se depender do meu país fico aqui sem tratamento, sem ir ao hospital, sem comer.”
Apesar das diversas tentativas de contacto, a embaixada da Guiné-Bissau nunca respondeu ao PÚBLICO — nem através do número de telefone de emergência que raramente atenderam.