Há negros portugueses?
O Estado português continua sem reconhecer a existência de uma minoria racial nacional.
Tal como acontece com os imigrantes, quando as pessoas negras portuguesas são alvo de discriminação racial devem denunciá-la junto da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). Supervisionada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME)), e coordenada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), a CICDR tem por objeto prevenir e proibir a discriminação racial sob todas as suas formas e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais ou culturais, por quaisquer pessoas, em razão da sua pertença a determinada origem, cor, nacionalidade ou etnia.
Porém, o facto de, independentemente do seu estatuto político (imigrante ou nacional), as pessoas negras portuguesas deverem dirigir-se a uma organização sob os auspícios do Comissariado da Imigração não é uma questão politicamente negligenciável. Com efeito, supõe a etnicização política dos negros em função da qual estes são vistos e tratados pelas instituições públicas como imigrantes e não como cidadãos portugueses, como inúmeros relatórios internacionais têm implicitamente denunciado. Por exemplo, um dos relatórios das Nações Unidas refere que o Estado português não reconhece na sua política nacional e no seu quadro jurídico os cidadãos portugueses negros como um grupo específico racialmente discriminado. Faz, neste contexto, algumas recomendações para acelerar aquele reconhecimento e implementar políticas públicas específicas para a minoria racial nacional.
A essas recomendações o Estado português respondeu que a sua aproximação à discriminação desse grupo era universal, i.e., incluía simultaneamente políticas contra a xenofobia, o racismo e a correlata intolerância. Acresce que na resposta sobre a discriminação racial contra os cidadãos portugueses, para além de se terem congratulado com o elogio internacional das políticas públicas a favor dos imigrantes, os representantes do Estado português mencionaram ainda a existência de um quadro legal para a proteção dos direitos dos imigrantes, de uma instituição pública (o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural), e de oito grandes projectos para os proteger da discriminação racial, xenofobia e intolerância. Destes, um destinava-se aos ciganos e os restantes aos imigrantes e aos seus filhos (dois Planos de Ação Nacionais para a Integração dos Imigrantes, o Observatório da Imigração, uma rede de 86 Centros de Imigrantes, o Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, o Programa Escolhas, a Mediação Intercultural nos Serviços Públicos e a Unidade de Apoio a Vítimas para Imigrantes e Vítimas de Discriminação Racial e Étnica).
É verdade que o ex-ministro adjunto da Presidência, Eduardo Cabrita, reconheceu a existência de cidadãos portugueses negros e que a CICDR tem dois membros que representam minorias raciais. No entanto, como o Estado português faz coincidir a discriminação dos estrangeiros (xenofobia) com a discriminação racial (racismo), confundindo realidades políticas e jurídicas tão distintas como a dos cidadãos nacionais e estrangeiros, o diálogo com essas associações negligencia as questões específicas relativas à discriminação racial dos cidadãos negros portugueses. Com efeito, para além do ciclo da pobreza, do desigual acesso à educação, aos serviços públicos e ao emprego, da discriminação na administração e no funcionamento do sistema de justiça e da violência policial, a consideração dos cidadãos portugueses como imigrantes obnubila a questão política da sua sub-representação como cidadãos portugueses nos processos de tomada de decisão política e pública a nível nacional (e.g. legislativo e executivo). De facto, se consideramos que o conceito de público envolve quer a dimensão institucional, quer a visível do poder político, o estatuto jurídico-político das pessoas portuguesas negras vistas como imigrantes tanto lhes coarcta o direito de participar nas instituições políticas nacionais, como as elimina da representação visível do exercício desse poder.
Por isso, só quando ajustar o nível legislativo e executivo ao constitucional e tiver reconhecido a existência de uma minoria racial nacional, cujos membros, enquanto cidadãos portugueses, têm o direito (e o dever) de reivindicar protecção política, judicial e social, o Estado português poderá, por um lado, desenhar políticas que permitam contrariar os efeitos da discriminação de que são alvo; por outro, conceber instituições cujos fins e âmbito de intervenção sejam consistentes com os direitos e deveres da minoria racial nacional.
Por exemplo, o governo belga distingue o Centro Inter-Federal para a Igualdade de Oportunidades (CIEC) do Centro Federal para a Imigração (CFM). O primeiro tem como objetivo combater a discriminação étnica, racial, sexual, de género, de idade, religiosa, filosófica e social contra os cidadãos belgas. Por sua vez, o CFM aborda problemas que se relacionam especificamente com os problemas dos migrantes, tais como por exemplo o tráfico de seres humanos e as políticas de asilo. Através dessa organização institucional, o Estado belga assinala que a nacionalidade belga inclui as diferenças étnicas, raciais, sexuais, de género, de idade, religiosa, filosófica e social de tal maneira que, tal como a discriminação na base do género, religião ou da orientação sexual, também a discriminação racial é inaceitável no quadro daquela nacionalidade. Por conseguinte, as pessoas negras belgas devem dirigir as denúncias de discriminação racial ao CIEC e não ao CFM, pois de outro modo o Estado belga trataria os membros da minoria racial como se fossem imigrantes e não como cidadãos belgas.
Esclarecemos que de pouco vale invocar a inexistência biológica de raças para desqualificar uma minoria racial, sustentando que a sua reivindicação sofre de viés racial. Em primeiro lugar, o naturalismo biológico contemporâneo opera com esse conceito sem cair na racialização e nos racismos (institucional, pessoal ou interiorizado). Se a racialização associa aos aspectos biológicos qualidades psíquicas, os racismos procedem à hierarquização dessas diferenças.
Em segundo lugar, mesmo que não existam raças biológicas, tal como a evidência científica da evolução das espécies não impede a existência de crenças criacionistas e de instituições nela alicerçadas (e.g. universidades), também a refutação científica das raças não impediu e nem impede a existência de crenças racistas e de instituições nelas inspiradas. Similarmente, o facto de a literatura científica nacional e internacional ter evidenciado a existência em Portugal de racismo institucional, pessoal e interiorizado não impediu nem impede a crença de que não há racismo em Portugal e a subsequente fundamentação da deliberação política nessa crença.
Finalmente, o facto de sublinharmos a necessidade de reconhecer uma minoria racial nacional não implica negarmos a importância política do combate contra a discriminação racial em relação aos imigrantes. Implica apenas reconhecer que se a discriminação racial contra os cidadãos portugueses continuar a ser vista na perspectiva do português-imigrante-a-viver-em-Portugal, os cidadãos negros portugueses continuarão sem voz própria nos processos de tomada de decisão política e pública a nível nacional (e.g. legislativo e executivo), de tal maneira que até mesmo quando se reconhece que são racialmente discriminados o debate e combate contra a sua discriminação é travado naquelas instituições pelos seus (bem-intencionados) tutores.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico