Ver o mundo com olhar de outro

O real não foi um entrave ao trabalho. Mas as fotografias de Tatiana Macedo também se vão afastando, desligando da realidade.

Foto

Diante das fotografias que Tatiana Macedo (Lisboa, 1981), vencedora do prémio Sonae Media Art em 2015, apresenta na Galeria Carlos Carvalho, recorde-se uma ideia de André Bazin. Aquela que o teórico e crítico de cinema francês nos deixou sobre uma certa qualidade da fotografia: que permitiria revelar o real, dando a ver coisas (“um reflexo no passeio molhado, um gesto de uma criança”) que de outro modo permaneceriam desapercebidas à nossa atenção e, acrescenta, ao nosso amor. E o que se vê na série de imagens, pela primeira vez mostradas em público, que a artista titulou de Orientalism and Reverse? Janelas de autocarros, em cujos vidros se reflectem lugares e paisagens, e com cortinas que deixam entrever assentos vazios. Com excepção de duas tímidas fotografias, não se vêem pessoas e há poucos traços que permitam identificar o contexto que as envolve.

Levante-se um pouco, então, o véu. Foram realizadas durante dois meses, em 2008, na cidade de Xangai, no contexto de uma residência na China e surgiram com e da deambulação da artista pela cidade. Num passeio, Tatiana Macedo apercebeu-se de autocarros urbanos em que os passageiros levantavam os olhos, espantados com os arranha-céus da metrópole. Decidiu “perseguir o tema” e descobriu, nas suas deambulações, os parques de estacionamento em que as viaturas imobilizavam para a saída dos seus passageiros (chineses de outras províncias). Aí, ao longo de vários dias de trabalho, foi enquadrando, captando segundo um ponto de vista, aquilo que as janelas mostravam e escondiam: cortinas, reflexos, tecidos, cores, objectos, atmosferas. Eis o que espectador vê na exposição: uma sucessão de imagens, arrebatadas ao fluxo do mundo e, no entanto, fabricadas por uma técnica, determinadas por um processo definido de elaboração.

Duas fotografias de passageiros prováveis (do metropolitano? de um comboio? de outro autocarro?) moderam a ausência de figuras humanas, mas não dão a ver rostos. Apenas detalhes discretos e turvos, silhuetas protegidas pelo recuo e a distância da câmara. De resto, fora de campo, ficaram a cidade, os corpos, os turistas, as ruas de Xangai, a China capitalista, um motor da globalização neste século. E no entanto, os vestígios do real e do mundo permanecem nos reflexos (ou nas sombras) dos edifícios nos vidros, nas gotas de chuva ou de humidade, numa camisa pendurada. O real não foi um entrave ao trabalho, pelo contrário. Mas, surpreendentemente, as fotografias também se vão afastando, também se vão desligando da realidade.

É como se aquelas janelas se tornassem palcos de contrastes cromáticos, de relações entre texturas e geometrias, aberturas e fechamentos, espaços finitos e infinitos. Manifesta-se nelas uma certa natureza pictórica (acentuada pelas molduras, pintadas à mão, com cor escolhida pela artista) que as liberta do mundo, conduzindo-as ao imaginário, trocando a verdade pela beleza, a observação do documento pela sedução. Noutra sala, uma instalação de delicadas e iluminadas superfícies convidam o espectador a outra experiência (mais intimista e material) das fotografias; no ano passado, na exposição Bela, realizada em Berlim, na Künstlerhaus Bethanien, a artista já mostrara imagens fotográficas enquanto instalação e objecto. Foi aliás, assim, que iniciou a sua ligação com a fotografia, como instalação, na Central St Martins College of Art & Design, entre 2000 e 2004, enquanto estudante de Fine Arts. Em cada superfície, Tatiana Macedo colocou páginas do livro em que foi publicada uma parte da série (com edição da Ghost Editions/Kunstraum Botschaft). O espectador pode, assim, reparar na potencialidade escultórica da imagens, ver as relações que entre si estabelecem, pensar nas colagens que prometem, nos seus parentescos latentes. A interacção é imaterial, instigada por imagens mentais, justaposições, correspondências.

De regresso à sala principal, Orientalism and Reverse, a exposição, volta a ligar-se mais intensamente à realidade, fixando um olhar nas imagens e oferecendo um sentido a uma frase do teórico e historiador de arte alemão Hans Belting: “Vemos o mundo com olhar de outro, mas confiamos que ele poderia ser também o nosso”.

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