Les Inrockuptibles desculpa-se por ter dado a capa ao cantor que matou a actriz Marie Trintignant
A onda de indignação provocada pela entrevista com Bertrand Cantat, que encontrou eco até no governo de Macron, obrigou a revista a retractar-se.
Uma semana após ter dedicado a sua capa ao ex-líder da banda rock Noir Désir, Betrand Cantat, que em 2003 espancou até à morte a actriz Marie Trintignant, a revista Les Inrockuptibles, violentamente atacada nas redes sociais, reconheceu esta terça-feira que se tratou de uma opção editorial “contestável” e pediu desculpa “aos que se sentiram feridos”.
A capa da revista, com uma grande fotografia do músico e, sobre ela, o título Cantat en son nom e um texto em que o entrevistado dizia que tinha estado “emocionalmente incapaz de ler ou ouvir”, mas que “a beleza, lentamente”, tinha nele “reencontrado um pequeno lugar”, gerou uma polémica que chegou mesmo ao governo de Emmanuel Macron, com a secretária de Estado para a Igualdade entre Homens e Mulheres, Marlène Schiappa, a escrever no Twitter: “E em nome de quê devemos nós suportar a promoção daquele que assassinou Marie Trintignant a murro?”
Uma das reacções mais fortes veio de outra revista, a Elle, cujo editorial – que usa uma réplica da capa de Les Inrockuptibles, mas com uma fotografia de Marie Trintignant no lugar de Cantat e o título Au Nom de Marie – lembra que a actriz “é hoje um símbolo” e o que “o seu rosto se tornou o de todas as mulheres vítimas da violência dos homens”.
Considerado uma espécie de Jim Morrison do rock francês – na entrevista à Les Inrockuptibles, assume a sua dívida aos Doors e aos Joy Division –, Bertrand Cantat foi condenado em 2003 como responsável pela morte de Marie Trintignant, que terá agredido repetidamente, na noite de 26 para 27 de Julho desse ano, num quarto de hotel de Vilnius, na Lituânia, provocando-lhe lesões irreversíveis no cérebro e deixando-a num coma profundo, de que a actriz já não voltaria a despertar, tendo acabado por morrer poucos dias depois, após uma tentativa de intervenção cirúrgica que não teve sucesso.
Cantat e Trintignant mantinham uma relação há ano e meio, e o episódio de violência terá sido desencadeado por uma mensagem que esta recebeu de Samuel Bechetrit, marido da actriz e pai do mais novo dos seus quatro filhos.
Sentenciado a oito anos de prisão, o cantor acabou por só cumprir metade da pena, tendo saído em 2007, em liberdade condicional, por decisão do juiz Philippe Laflaquière. Muito criticado pela sua opção, o magistrado garantiu ter mesmo chegado a receber ameaças de morte, mas argumentou que não havia “nenhuma razão para recusar a libertação” do músico, que considerou “justificada e merecida”.
Mas já após a sua libertação, Cantat viu-se novamente envolvido em acusações de violência doméstica. A sua mulher, Krisztina Rády, uma respeitada intelectual húngara, escritora, tradutora e encenadora (com formação académica em línguas e culturas francesa e portuguesa), suicidou-se em Janeiro de 2010, seis meses após ter deixado uma mensagem telefónica aos pais a dizer que era vítima de violência psicológica e física do ex-marido, de quem se separara em 2002 por causa da relação deste com Marie Trintignant, mas de quem voltara a aproximar-se quando Cantat saiu da prisão.
Se a Les Inrocks lamenta ter “reavivado uma dor”, assegurando que não teve essa intenção, e se sublinha que “sempre combateu a violência contra as mulheres”, também argumenta que “o jornalismo exige, por vezes, questionar as zonas de sombra e ir para lá das fronteiras e do que parece evidente”. E lembra que Cantat “faz parte da história” da revista desde os anos 80 e contribuiu para a “construção da sua identidade”.
O pretexto para a polémica capa foi o disco que o músico acabou de gravar a solo, após uma efémera tentativa de relançar a carreira com o duo Détroit. Mas a Les Inrockuptibles já publicara, em 2013, a primeira entrevista dada por Betrand Cantat após a sua libertação, igualmente muito criticada na altura, até porque o cantor assumia nela o papel de vítima do “circo dos média”, que não teriam tido em conta “o quanto amava Marie”, o teriam “transformado numa caricatura”, e lhe teriam voltado a dirigir acusações “delirantes” e “inaceitáveis” a propósito do suicídio de Rády.