Não é aproveitamento político: é respeito, é pudor, é sentido do dever
Digam o que disserem, inventem os aproveitamentos políticos que inventem, Pedrógão não podia voltar a acontecer. E aconteceu.
1. Antes de tudo o mais, e porque os fogos ainda lavram com violência, o imperativo é salvar vidas, evitar ferimentos e tratar dos feridos hospitalizados ou não hospitalizados. Essa é a prioridade, ponto final. Depois é necessário reduzir e minorar danos materiais e controlar os fogos. Mais uma tarefa de manifesta urgência, a somar àquela outra como segunda e essencial prioridade. O desincumbir-se destas urgências em nada impede que se faça no terreno, em concomitância, o enorme trabalho de assistência psicológica, moral, espiritual e material, junto das vítimas, dos familiares das vítimas e das comunidades locais afectadas por tão grave trauma.
A par disso, subsiste um lugar íntimo e sagrado para a consternação e a compaixão, seja pessoal, seja de todo um povo em sofrimento. Um espaço em que os crentes oram e os não crentes se recolhem. Em que todos, desde os que têm responsabilidades públicas aos que simplesmente assistem incrédulos e impotentes à televisão em labaredas, comungam de uma perda comum, de uma mágoa nacional. Há, pois, um espaço de respeito e de fraternidade (palavra que aqui cabe seguramente melhor do que o sucedâneo que agora irritantemente a substitui – “solidariedade”). Essa vaga de respeito e fraternidade consubstancia-se, aliás, na gratidão para com os bombeiros, os polícias, os populares e toda a protecção civil que desespera em cada salvamento. E materializa-se na invariável e impressionante onda de ajuda dos portugueses, que, nas suas escassas despensas, acabam sempre por achar bens e bem para partilhar.
Estas são as prioridades neste exacto tempo. E sobre elas ninguém tem dúvidas nem hesitações; ninguém é pérfido nem assaltado por maquiavelismos ou perversões. Todos sofrem, todos lamentam, todos choram.
2. Para lá dos magnos problemas de ordenamento florestal das últimas décadas e de todas as estratégias estudadas e propugnadas por muitos, existe a situação a que chegamos, a situação em que estamos, o risco em que vivemos. É tarefa primordial do poder político, do Governo em geral e da Administração Interna em particular – conhecendo as nossas debilidades, as nossas carências, a potenciação crescente dos nossos riscos –, dotar-se dos planos e dos meios de acção para evitar a todo o transe a perda de vidas, a ocorrência de lesões físicas permanentes ou transitórias, a perda de bens (em especial, de habitações e empresas) e a destruição do património florestal. Este é um exigente trabalho público, de cariz político e administrativo, que tem de ser desenvolvido em forte ligação com a sociedade civil. Essa tarefa pública primordial – a segurança de pessoas e bens contra o anormal risco de incêndio português – exige capacidade de chefia e de decisão, reclama organização rigorosa e sentido das prioridades, pressupõe autoridade e legitimidade no comando. É uma tarefa pública de primeira grandeza, que exige um Estado forte e mobilizado. É uma responsabilidade do Governo, quer ele queira, quer não. É uma das tarefas ingentes do Ministério da Administração Interna, quer ele as assuma, quer não, quer as assuma competentemente, quer não.
3. Por entre a acusação da Operação Marquês e a entrega da Proposta de Lei do Orçamento do Estado, veio à luz, mas não à liça, o chamado Relatório de Pedrógão Grande sobre os terríveis fogos iniciados a 17 de Junho do corrente ano. O relatório é muito claro na imputação de responsabilidades ao Estado, por acção, omissão e imprevisão e, designadamente, à Autoridade Nacional de Protecção Civil. Esta entidade depende directamente do Ministério da Administração Interna e actua sob a sua cadeia de comando. Mas a ministra não tirou e, pelos vistos, não tira consequências.
Curiosamente, e a talhe de foice, o relatório desvaloriza francamente as falhas do inenarrável SIRESP, que foi considerado pelo primeiro-ministro, em pleno Parlamento, o alfa e o ómega de todos os problemas de combate aos fogos. Que isso tenha sido feito em plena disputa com um operador privado de telecomunicações (que quer comprar uma estação televisiva) e com recomendação de não contratação dos seus serviços não foi, na altura, visto como “aproveitamento político”. Aproveitamento político era outra coisa: era responsabilizar o vértice político-administrativo por falhas já evidentes e ostensivas na resposta aos fogos…
4. Voltemos ao essencial. O Governo não tirou nem quis tirar consequências políticas e administrativas do caso de Pedrógão, nem sequer diante da publicação do relatório. Mais grave: de meados de Junho para cá, com um Verão consabidamente quente e seco e já com perspectivas fundadas de prolongamento pelo Outono, que fez o Governo, que fez a ministra? A tragédia pessoal de Pedrógão poderia ter sido evitada ou, ao menos, minorada, pelo que nos deixa saber o relatório que agora veio a público. Mas a repetição da tragédia pessoal em pleno Outono, com números tão vastos e devastadores que podem alçar a mais de 4 dezenas, não pode ser mera casualidade ou coincidência. Que Governo é este que depois da tragédia de Junho responde da mesma forma descoordenada, desinformada, atabalhoada perante o desenrolar de um fim-de-semana de alto risco? Este número avassalador que nos diz sobre o que andou a fazer o Governo e o que andou a fazer a ministra? Será que, mesmo diante da dor ou até por causa dela, devemos silenciar e calar? Não podemos nem devemos insurgir-nos, levantarmo-nos, sem demagogias, sem histerias, mas com a serenidade e a dignidade que os mortos nos exigem?
Não, senhor primeiro-ministro! Não, senhora ministra! Não, senhores jornalistas e comentadores! Não, senhores porta-vozes e estandartes do PS! O Estado falhou, o Governo falhou, a ministra falhou. E por respeito, por pudor, por sentido do dever, é tempo de manter a dignidade, mas não de conservar o silêncio. Digam o que disserem, inventem os aproveitamentos políticos que inventem, Pedrógão não podia voltar a acontecer. E aconteceu.
SIM. Presidente da República. Ao longo do Verão, esteve presente e acompanhou Pedrógão. Com o relatório, deu um sinal político forte. Vítimas e todos nós já só podem nele confiar.
NÃO. Orçamento laxista. Num momento em que havia espaço para algum alívio e boa folga para prudência, o Governo quis ser cigarra. Quando vier o Inverno, já tarde, clamaremos pela formiga.