Nós não merecemos isto

"Só sabe quem passa por elas", bem diz a minha avó. E ainda me é difícil colocar isto tudo em palavras. Ensopámos os terrenos em volta e esperámos que ele avançasse, com o coração nas mãos e à espera que o caminho de terra e o solo encharcado o travasse

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Adriano Miranda

Este domingo, 15 de Outubro, aconteceu aquilo que me perseguiu e atormentou todos os verões desde que me lembro de mim. Mas, este domingo, o que aconteceu conseguiu ir além de todas as minhas expectativas e superou todas as imagens que formei na minha cabeça, tenha sido com o pavor do desconhecido aos nove anos, a imaginação fértil aos doze ou a ponderação (talvez mais racional) aos 25.

Parte das férias de Verão eram passadas em casa da minha avó. Nos dias mais quentes gostava de ir para o parque brincar com os miúdos da aldeia, mas nem sempre era possível. O cheiro a queimado, o fumo intenso, a correria dos vizinhos e a preocupação da minha avó de cada vez que sirenes passavam a alta velocidade impediam-nos de o fazer. Conheço o termo “incêndio” desde que me lembro e temo as labaredas, o calor e o fumo desde bem antes ainda. Odiava tudo.

O meu coração acalmava quando via os grandes tanques vermelhos partirem rápido em direcção à coluna de fumo. "Vai passar rápido, vó." Mas às vezes eram dias inteiros, uma semana — e não passava. No final, havia sempre um conhecido, um vizinho, um amigo, que perdera frutos de anos de trabalho — se não a vida. Felizmente, em casa da minha avó só numa eventualidade aconteceria alguma coisa. Passávamos a vida a vigiar as fagulhas.

Quando lá dormia, na inocência dos nove anos, passava noites em branco a espreitar a janela em busca de sinais, a cheirar o ar, com o número dos bombeiros escrito nas costas do bloco de pintar. Quando lá não podia dormir, sentia que os estava a deixar ao abandono, os meus avós velhinhos, sem poderem pegar nas coisas para fugir sozinhos, e soluçava a viagem toda, em segredo dos meus pais.

Por volta dos 14 já ficava sozinha em casa com o meu irmão mais novo. A casa dos meus pais e as de mais quatro ou cinco vizinhos estão rodeadas de pinhais que a ninguém da rua diz respeito. Todos os anos é uma luta para que se façam as limpezas, se cortem as árvores que se debruçam sobre os nossos telhados e as que parecem pólvora junto dos nossos acessos. As autoridades competentes empurram-nos consecutivamente de uma entidade para outra e ninguém nos dá resposta.

Por isso, aos 14, de duas em duas horas eu espreitava em volta da casa, à procura de sinais. Tremia de cada vez que ouvia sirenes ao longe, via o fumo crescer ou sentia o cheiro a queimado. Acampava junto à janela grande da sala, escondia uma mochila à entrada e trazia o meu irmão para junto de mim. Via televisão e ouvia rádio em busca de respostas que nunca chegavam. Imaginava cenários, avaliava a reacção dos vizinhos e traçava planos de fuga que incluíam eu e o meu irmão a  carregarmos os nossos três cães. Felizmente, nunca vi as chamas de perto. Até domingo.

No domingo, o fogo chegou-nos silenciosamente à parte de trás da casa e todos os anos de planos ou a ponderação dos 25 de nada me valeram. “Só sabe quem passa por elas”, bem diz a minha avó. E ainda me é difícil colocar isto tudo em palavras. Ensopámos os terrenos em volta e esperámos que ele avançasse, com o coração nas mãos e à espera que o caminho de terra e o solo encharcado o travasse. Não travou, ardia tudo. Fizemos quilómetros a pé a ajudar com mangueiras, baldes e tudo o que houvesse à mão e todos que precisassem. Adorava dizer que tudo isto é só altruísmo, mas não é: friamente sabemos que se pegar em mais algum lado, as coisas ficam negras para todos. Mas, no fim de tudo, vos garanto: o sentimento de gratidão perdura para sempre e a comunidade é mais unida do que nunca.

Desta vez, tivemos a sorte de ter a ajuda dos bombeiros, que conseguiram pará-lo a uns dez metros dos nossos muros traseiros. Homens que nos disseram “Nós somos humanos, não somos heróis, não aguentamos mais” e imploravam pela hora a que pudessem chegar a casa. E quem haveria de os julgar?

Poucas horas depois, o fogo chegava-nos pela frente da casa... e já estávamos sozinhos. Não vos consigo explicar o sentimento de nos vermos sem saída, com uma parede de labaredas altas a correr (empurrada pelo vento) na nossa direcção e pouco ou lugar nenhum para onde fugir. Passou pouco mais de meia hora entre o momento em que percebemos que o fogo estava a avançar, ao longe, até de facto nos chegar à porta. Tivemos tempo de respirar fundo, puxar as mangueiras que estavam a proteger as traseiras, encher muitos baldes e ir buscar forças onde as houvesse.

O meu lado mais emocional — ou o desespero — colocou as coisas em perspectiva: deixo tudo para trás e não deixo que as pessoas que mais amo neste mundo corram risco algum ou continuo a lutar por aquilo que os meus pais ergueram nos últimos 25 anos? Ninguém devia ser confrontado com esta pergunta, mas a resposta é fácil. Se começasse a correr mal, os animais estavam dentro dos carros, os carros estavam prontos a arrancar e ninguém ia olhar para trás.

O ser humano, quando quer, tem muita força. E todos queríamos sair dali com tudo a que tínhamos direito: a nossa vida, a nossa história e as coisas que tanto nos deram trabalho a construir. Estamos todos bem, as casas estão bem, mas não está tudo bem.

O fogo não tem culpa, por isso não lhe vou chamar diabo, ainda que tudo isto tenha estado perto do inferno, se o existe. O verdadeiro pirómano é o Estado e os políticos que temos, a quem falta muita política e capacidade de governação. Mas acima de tudo, muito bom senso. Não há políticas de prevenção, não há educação, falta regulação e vigilância activa... e há tantos anos que isto é tema. Os fogos não começaram depois de Pedrógão. Mas parabéns, senhor António Costa, sabe usar termos muito empreendedores.

Vou dispensar as politiquices, mas lembrar que é preciso tomar uma atitude. Não só para demitir alguém, mas por todos nós e pelo governo que merecemos.

Por isso, por nós, que a 21 de Outubro saiamos todos à rua. Não é só Porto, não é só Lisboa, que seja o país todo.

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