Uma comédia chamada Estado português
“O mais fácil para mim seria a demissão”, disse a ministra da Administração Interna. Por favor, faça o mais fácil, e vá-se embora de vez.
Quando tudo corre mal, o Estado Todo Poderoso descobre subitamente que compete a cada cidadão desenrascar-se sozinho. Foi o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, quem o disse: “Têm de ser as próprias comunidades a ser proativas e não ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas. Temos de nos autoproteger.” A ministra repetiu a mesma ideia: “As comunidades têm de se tornar mais resilientes às catástrofes.” Secretário de Estado e ministra só se esqueceram de acrescentar este detalhe: muitas das vítimas deste domingo morreram a tentar fazer isso mesmo – a tentar salvar sozinhas as suas casas, os seus armazéns, ou simplesmente as suas vidas. Trinta e seis (à hora a que escrevo) não conseguiram.
Se sacudir a água do capote servisse para apagar as chamas já não havia fogos em Portugal. O governo que nos desgoverna mete o nariz em tudo o que pode, e no próximo ano até vai controlar, para efeitos fiscais, o sal que comemos. Mas quando se trata de assumir a responsabilidade por mais uma catástrofe de dimensões absurdas, a mensagem socialista inspira-se naqueles que antigamente classificava como “fanáticos neoliberais”. O secretário de Estado aconselha-nos a sair da nossa zona de conforto. A ministra produz uma variação do célebre “ai aguenta, aguenta”. O primeiro-ministro garante não ter uma “varinha mágica” que possa resolver a situação e que andar por aí a exigir demissões de ministros é coisa “infantil”. As boas notícias são consequência do enorme mérito do governo. As más notícias são azares da mãe natureza e do aquecimento global. Quem discordar é uma criança.
Constança Urbano de Sousa, antes de nos informar que não teve férias, repetiu um par de vezes que estávamos perante “uma situação absolutamente extraordinária”. A ministra passou o dia a fazer o playback de Pedrógão Grande. Só que o disco está riscado. Se uma tragédia acontece duas vezes em quatro meses ela não é absolutamente extraordinária. E não sendo – nem sequer faltaram os carros calcinados em Oliveira do Hospital –, isso significa que o Estado voltou a falhar na mais básica das tarefas: proteger a vida dos seus cidadãos. António Costa fez tudo para que ninguém perdesse demasiado tempo a ler o relatório de Pedrógão Grande. Não só fez declarações públicas sem o ter lido na totalidade (foi o próprio quem o admitiu), como o timing da sua divulgação (pós-eleições autárquicas, orçamento para 2018, acusação a José Sócrates) teve como consequência um débil impacto público. Infelizmente para ele, e para todos nós, a natureza trocou-lhe as voltas.
Por isso, é fundamental lembrar que as conclusões do relatório não subscrevem a sua narrativa favorita sobre os fogos. Sim, é verdade que muitos dos problemas são estruturais e vão demorar anos a ser corrigidos. Mas é igualmente verdade que o relatório aponta para falhas muito concretas na coordenação da Protecção Civil, na não-antecipação da fase Charlie, no atraso na evacuação das aldeias, na falta de informação das populações, na ignorância científica de quem combate o fogo, nas nomeações de boys para a Protecção Civil. Nada disto tem a ver com pinheiros e eucaliptos. Tudo isto tem a ver com responsabilidades políticas – que Costa ignora olimpicamente, como se viu no seu discurso. “O mais fácil para mim seria a demissão”, disse a ministra da Administração Interna. Por favor, faça o mais fácil, e vá-se embora de vez.