Em defesa do pluralismo

A diabolização dos partidos políticos em nada ajuda a saúde da nossa democracia.

Deparamo-nos, com elevada frequência, com ataques à “ideologia”. “Ideológico” tornou-se um insulto, uma forma de desqualificar posições contrárias. As posições dos outros são “ideológicas”. As nossas são verdades insofismáveis. As “ideologias” seriam coisa do passado. Interessariam os debates técnicos, sobre como implementar as únicas boas ideias: as nossas.

Mas a política é feita de ideologias. E todos temos uma ideologia. Todos temos uma hierarquia de valores e princípios que se traduzem, de uma forma mais ou menos pensada e estruturada, numa conceção acerca de como deve ser organizada a comunidade e de qual a relação que deve ser estabelecida entre esta e os seus membros. Num debate político, as posições em confronto têm subjacente uma ideologia, quer esta seja assumida, quer não. E ao discutir as políticas públicas, o debate político é necessário, não basta o debate técnico.

A diabolização das “ideologias” é um ataque frontal ao pluralismo. As “tecnocracias” não são mais do que tentativas de afirmar que certas opiniões (subjectivas), subjacentes a uma determinada política pública, são verdades (objetivas). Confundir opções políticas com necessidades técnicas faz deteriorar o confronto de ideias necessário para o regular e saudável funcionamento de uma democracia liberal, assente na liberdade de pensamento, de expressão e de associação.

Da mesma forma, a diabolização dos partidos políticos em nada ajuda a saúde da nossa democracia. Os indivíduos são a base da comunidade, mas não existem de forma atomística, mas sim estabelecendo relações uns com os outros, em torno de interesses (e ideologias) comuns ou similares. Os partidos políticos mais não são do que associações organizadas para facilitar que os seus membros ou aliados obtenham e mantenham posições de poder. Neste sentido, a oposição dos “partidos políticos” aos “cidadãos”, por vezes feita, é perniciosa, e em nada ajuda a resolver os problemas dos “aparelhos partidários” e do carreirismo político.

Os “partidos políticos” não se opõem aos “cidadãos”, são uma forma de os cidadãos se organizarem politicamente (os “movimentos independentes” mais não são do que partidos locais, com outro nome e sem as benesses dos partidos nacionais). E aqueles que, sendo membros dos partidos, fazem da política profissão, são tão cidadãos como os outros.

Importa promover maior adesão aos partidos e facilitar a criação de novos partidos, que façam concorrência efetiva e possam constituir um verdadeiro desafio aos partidos já existentes. Importa promover uma concorrência efetiva entre diferentes projetos para o país, corporizados em diferentes partidos políticos (algo a ter em conta no contexto da atual disputa pela liderança do PSD), mantendo sempre a possibilidade de cooperação, quando necessário (em coligação ou através de acordos parlamentares).

O problema não está na existência de partidos políticos, que emergem naturalmente, com esse ou com outro nome, formal ou informalmente, em qualquer democracia. O problema está na forma como estão regulamentados em Portugal, do ponto de vista da sua criação e do seu financiamento, que criam importantes barreiras à entrada de novos partidos e à sua sobrevivência.

A criação e manutenção de um novo partido não é fácil. Primeiro, é necessário recolher 7500 assinaturas. Este requisito, na prática, não é mais do que um primeiro entrave burocrático, sem substrato material relevante. Implica passar meses a recolher e organizar assinaturas e dados pessoais dos signatários, para as entregar ao Tribunal Constitucional, juntamente com os estatutos, uma declaração de princípios ou programa, e outros elementos. Para quê pedir 7500 assinaturas? Por que não pedir apenas os estatutos, o programa e os nomes e dados pessoais dos fundadores? Constituir um partido, devia ser simples. Quase devia ser possível existir um “partido na hora”, como existe uma “empresa na hora”.

Depois, sendo aceite o partido, por não ser considerado fascista ou racista ou por não utilizar símbolos religiosos, é necessário manter esse partido em funcionamento, o que implica recursos humanos e dinheiro. Seria importante estudar se o benefício conferido pela legislação sobre financiamento partidário aos partidos que já têm representação parlamentar e já existentes é excessiva e outros métodos de financiamento partidário.

Por outro lado, uma coima do Tribunal Constitucional derivada do incumprimento de regras relacionadas com a contabilidade partidária tem pouca relevância para partidos grandes, mas relevância significativa para partidos pequenos.

Na prática, com o atual enquadramento relativo ao financiamento dos partidos, torna-se crucial que o partido comece com um número relevante de pessoas já organizadas, e com capacidade para financiar o partido de forma estável, até este conseguir acesso a uma subvenção pública (veja-se a diferença entre o MEP e o PAN).

É necessário reabilitar as ideologias e os partidos políticos. Assumir que, subjacente a uma opção política, está uma opção ideológica, pelos diversos agentes políticos. Promover um debate político informado, mas não dominado, pela técnica. Diminuir as barreiras à entrada de novos partidos políticos e diminuir os custos de contexto relativos à sua manutenção.

Mas é preciso mais ainda: é preciso colocar na agenda política a reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República (como fez recentemente o IPP, num seminário), dado que, atualmente, dificulta desnecessariamente as candidaturas e, embora proporcional, beneficia os partidos com mais votos, e uma verdadeira educação cívica, que promova uma cultura de debate (e não de “respeitinho”) e promova a intervenção informada dos cidadãos, fora e dentro dos partidos.

O pluralismo confere vigor a uma democracia. O confronto e o debate de ideias levam a um maior escrutínio e maior responsabilização dos agentes políticos e das políticas públicas propostas ou implementadas. Todos beneficiamos do pluralismo. E a todos nos compete defendê-lo e promovê-lo. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não reflectem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa ou de qualquer outra instituição.

Sugerir correcção
Comentar