O caso das instruções verbais do Governo Sócrates na desblindagem de estatutos da PT
Reputado professor Sérvulo Correia admitiu aos procuradores que como representante das golden share do Estado na polémica Assembleia Geral da PT recebeu instruções verbais sobre o sentido da votação através, não de membros do Governo, mas de colegas de escritório
Para fundamentar a tese de que o antigo primeiro-ministro José Sócrates recebeu seis milhões de euros em luvas para usar os meios que tinha ao seu alcance para inviabilizar a OPA lançada, no início de 2006, pela Sonaecom sobre Portugal Telecom, o Ministério Público desvenda muito sobre os bastidores desta operação. É assim que se fica a saber que o reputado professor Sérvulo Correia que representou a golden share do Estado na polémica Assembleia Geral da PT, em Março de 2007, recebeu instruções verbais sobre o sentido da votação através, não de membros do Governo, mas de colegas de escritório.
A acusação dedica um capítulo com perto de 300 páginas às relações entre o grupo liderado pelo antigo banqueiro Ricardo Salgado e a PT e explica detalhadamente de que forma Sócrates e o seu Governo terão influenciado o desfecho da OPA, que acabou sem ver a luz do dia. Isto após os accionistas da operadora terem recusado na Assembleia Geral da PT, a 2 de Março de 2007, acabar com a desblindagem dos estatutos. Essa era uma condição imposta pela própria Sonaecom (proprietária do PÚBLICO) para que a OPA avançasse, já que de acordo com as regras que então vigoravam nada servia ao grupo da família Azevedo comprar mais de 10% das acções da operadora porque não poderia exercer o voto relativamente ao que excedia esse valor.
A acusação da Operação Marquês desmonta a alegada neutralidade que José Sócrates e o seu Governo assumiram na altura publicamente. Exemplo disso, descreve-se na acusação, é a forma como decorreu aquela assembleia-geral, onde o Estado foi representado pelo fundador da sociedade Sérvulo & Associados, agora professor universitário jubilado.
Ouvido pelo procurador Rosário Teixeira já na recta final da investigação, em Abril deste ano, Sérvulo Correia admitiu que recebeu instruções sobre a orientação de voto como representante da golden share do Estado naquela assembleia-geral de forma verbal. E essa instrução - segundo o seu depoimento a abstenção - fora-lhe transmitida, não por membros do Governo, mas por dois colegas de escritório.
O Executivo liderado por Socrates "ao contrário do que era prática comum na elaboração das Cartas Mandadeiras que nomeavam os seus representantes às Assembleias Gerais da PT", sustenta a acusação, "não fez constar qualquer instrução de voto" no documento em que nomeou Sérvulo Correia.
O Ministério Púbico diz que Sócrates "diligenciou no sentido de ser transmitido oralmente ao representante do Estado que se deveria abster na votação, mas assegurando-se simultaneamente que, caso no decurso da Assembleia-Geral da PT a proposta para alteração dos Estatutos reunisse uma maioria de dois terços dos votos favorável, se transmitisse imediatamente ao representante do Estado que deveria exercer o direito de veto da golden share, votando contra".
O PÚBLICO consultou o depoimento de Sérvulo Correia durante o inquérito (o professor faz parte do rol de testemunhas de acusação deste caso) e o reputado advogado apenas admite ter recebido instruções verbais para se abster.
O antigo professor universitário garante que nunca reuniu com nenhum membro do Governo antes da assembleia de 2 de Março e reconhece que o convite e as instruções sobre o sentido de voto que deveria seguir lhe foram transmitidos por dois colegas de escritório, Rui Medeiros e Lino Torgal. Questionado pelo Ministério Público sobre se "não estranhou" ter recebido um convite por "via indirecta" e instruções pela mesma via, o advogado respondeu que não. E justificou essa posição com o facto de "confiar" nos seus colegas.
Adiantou, no entanto, que na altura lhe foi disponibilizado o contacto telefónico directo do então ministro dos Transportes e Comunicações, Mário Lino, e de um secretário de Estado que admite ser Costa Pina, para que, se fosse necessário, obtivesse orientações durante a assembleia.
Nas cinco páginas que resumem o depoimento de mais de duas horas de Sérvulo Correia no Departamento Central de Investigação e Acção Penal não é dito se os contactos foram usados. O reputado advogado disse ao procurador não se recordar das orientações que lhe foram dadas relativamente à votação de um outro ponto da agenda, que deveria decidir se os accionistas da PT concordavam com a compra de mais de 10% da PT por parte da Sonae. Esse ponto acabou por não ser votado, já que a recusa em desblindar os estatutos da PT inviabilizou por si só a OPA.
No depoimento Sérvulo explicou que foi escolhido para representar o Estado naquela assembleia-geral porque havia uma equipa do seu escritório a preparar uma resposta para apresentar à Comissão Europeia que já nessa altura contestava a existência da golden share naquele gigante privado das telecomunicações. A sociedade de advogados fora contratada pelo Estado para sustentar juridicamente perante a Comissão Europeia porque é que o Estado português não estava disposto a prescindir de intervir nas grandes decisões estratégicas de uma empresa como a PT. Mais tarde o Estado foi obrigado a mudar essa posição face a uma condenação por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia. Contactado pelo PÚBLICO através da assessoria de imprensa da sua sociedade, Sérvulo Correia disse não ter nada a comentar sobre este caso.
Recorde-se que a Sérvulo & Associados também assessorou o Estado na polémica compra dos submarinos e chegou a ser alvo de buscas nesse caso. Um dos seus advogados chegou a ser constituído arguido nesse inquérito, sendo a única pessoa que chegou a figurar oficialmente como suspeito, num processo que terminou arquivado após largos anos de investigação. Com Ana Henriques