Uma vida a levitar com Chinaskee & Os Camponeses

Malmequeres, o álbum de estreia de Chinaskee & Os Camponeses, é animado por uma existência juvenil tão dada a exaltações de coração aberto quanto a dúvidas e inquietações. Uma máquina onírica rock assinada por Chinaskee & Os Camponeses.

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Maria Inês Peixoto

“Verdades. É isso que estamos a transmitir”, diz, peremptório, Miguel Gomes, ou seja, Alex Chinaskee, pseudónimo onde se fundem Alex Turner, o vocalista dos Arctic Monkeys, e Henry Chinaksi, alter-ego literário de Charles Bukowski. Di-lo peremptório, mas não o faz com o tom de quem gravou um disco como plataforma doutrinária. “Se estamos felizes, cantamos que estamos felizes, se não estamos felizes, cantamos que não estamos felizes”. É essa a verdade de Chinaskee, tão límpida e transparente quanto é incerta e misteriosa, do domínio do sonho e da vigília, a música que assinou com os Camponeses.

Esta é a nossa verdade: Malmequeres é uma pérola, é rock como máquina onírica, animado por uma existência juvenil tão dada a exaltações de coração aberto quanto a dúvidas, inquietações e depressões. Malmequeres é uma colecção de canções em que o prazer em sermos embalados numa melodia pop imaculada não dispensa o gosto pela viagem música fora só pelo prazer de o fazer. O single de apresentação, o maravilhoso Dia de praia, é todo ele lazeira de Verão e memória de Verão, neste e em qualquer tempo, cantado com dolência e marcado pelo envolvência vintage dos teclados - “molhar os pés à beira-mar / ver as curvas dos corpos a passar / Passar por mim / não quero ver / chegar o fim”.

A primeira canção, Odor, é por sua vez caminhada cósmica com a guitarra em silvados Syd Barrett, secção rítmica precisa e órgão faiscante – mas onde há espaço para coros e melodias evanescentes levitando suavemente pelo ar (há sempre espaço para eles no disco). “Toda aquela nuvem, toda aquela atmosfera, é suposto transportar. Não elevar, mas transportar para um sítio diferente”, explicam ao Ípsilon. 

Malmequeres é creditado a Chinaskee & Os Camponeses. Isto porque caiu o Alex a Chinaskee e porque ele já não está sozinho (nunca esteve, na verdade, como se explicará mais à frente). Tem a seu lado SunKing, o teclista nascido Luís José Tojo, Trovador Falcão, o baixista que responde por David Simões quando trajado à civil, e o baterista Ricardo Oliveira, o camponês sem “nom de plume”, como se diz em França. É criação de quatro antigos colegas do Liceu Camões, em Lisboa, que quiseram subir ao palco da escola. Isso foi o início de tudo. Ou quase.

Havia o antes. O de Miguel a descobrir os Talking Heads e a perceber que não poderia ficar só por ouvinte, queria criar como eles, inventar-se em palco como eles. O de Daniel a encontrar numa gaveta em casa dos avós, “devia ter 10 ou 11 anos”, a colectânea 1 dos Beatles e a ter uma epifania. Houve o depois: eles a saírem pouco a pouco do microclima do liceu a descobrirem toda uma cena a fervilhar à sua volta.

“O primeiro passo foi criar a [editora] French Sisters Experience”, conta Miguel. “Nem sabíamos que havia mais editoras em Lisboa. A única banda pequenina que conhecíamos eram os Old Yellow Jack, que entretanto já acabaram”. À conversa com os Old Yellow Jack perceberam que também eles estavam a criar uma editora e que essa editora tinha uma noite de concertos no Musicbox, em Lisboa. Viu Galgo, Basset Hounds e Fugly. “Depois descubro que os Galgo tinham tocado na semana anterior com os Mighty Sands e que os Mighty Sands tinham tocado com o [Filipe] Sambado e com o [Luís] Severo” – e assim sucessivamente.

Um carro com balões dentro

Aquilo que ouvimos em Malmequeres nasce daquele contexto, entretanto alargado geograficamente. O novo álbum é editado pela Revolve, a editora/promotora sedeada em Guimarães em cujo catálogo encontramos os Toulouse, Marco Franco, Papaya ou Joana Guerra, e que é responsável pelo festival Mucho Flow, onde, a 7 de Outubro, Malmequeres teve a sua primeira apresentação em palco – a próxima acontece no Musicbox, dia 20. Miguel já tinha tido ouvidos despertos para os Pontos Negros, e Luís acabaria por se apaixonar por uns rapazes chamados Capitão Fausto, mas a tomada de consciência desde fervilhar colectivo, comunitário, foi determinante.

Aquilo que ouvimos agora não é um simples primeiro passo. É a imaginação hiperactiva de um cantor, guitarrista e compositor, a encontrar banda que concretiza e complementa os seus instintos, que o leva mais longe – algo que se torna evidente quando ouvimos os primeiros EPs assinados Alex Chinaskee, Campo, editado em 2016, e Trocadinhos ao Pôr-do-Mi, lançado a 1 de Janeiro deste ano. O primeiro é power-pop polidinho, o segundo foi motivado, diz Miguel, “pelo grande pavor ao anterior: quis estragar aquele som todo”.

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Miguel teve a colaboração dos Camponeses em ambos os EP, mas Malmequeres, produzido por Filipe Sambado, tem outra dimensão. “É como as indicações que o Julian Casablancas deu para o primeiro disco dos Strokes. Queria que fosse como as suas calças de ganga favoritas, que são as mais velhas, mas também as mais confortáveis”, ilustra Miguel – e está a pensar no som. “Gosto de equilíbrio entre as coisas cruas e a ouvirem-se mal e outras mais límpidas. O contraste resulta bem”, aponta David, e também se refere ao som. “Gosto de pensar neste disco como instrumentos antigos a tocar música nova”, descreve Luís – e continua a falar do som, mas aponta algo mais. E é esse algo mais, a forma como se cantam a si mesmos e ao seu tempo – Miguel Gomes celebrava o seu 21º aniversário no dia da conversa com o Ípsilon -, enquanto criam música que é ponte entre o ontem dos psicadélicos de 1960 e do shoegaze dos 90s e o hoje dos Growlers, dos Tame Impala, dos Capitão Fausto, de Filipe Sambado, que torna especiais estes Malmequeres de Chinaskee & Os Camponeses. Miguel descreve-o como “um disco de sentimentos”: “Quando ouvem o Dia de praia quero que saiam à rua, quando ouvem o Aqui findam as vaidades, quero que vão beber um copo ao seu bar preferido, quando ouvem o Mal me queres, quero que dêem um beijo à pessoa de quem gostam e que durmam aconchegados”.

O nome Chinaskee vem da descoberta de Bukowski numa Feira do Livro, quando Miguel parou num título, Música Para Água Ardente, e na capa com garrafa azul da respectiva edição da Antígona. “Cada conto era uma história cada vez mais freak, mais terrível e assustadora. Eram contos rock’n’roll”. Na altura, Miguel estava a afogar uma desilusão amorosa numa vida “à Bukowski”, salvaguardadas as devidas distâncias, “naquele sair à noite para esquecer o dia anterior”, e vivia a ambivalência tão presente no escritor, com euforia e depressão como partes indistinguíveis da mesma moeda. “Pensei que, quando fizesse alguma coisa [na música] iria aproveitá-lo”. Adaptou o alter-ego ao seu, mas não procuremos na sua música os excessos, os negrumes e a escatologia de Bukowski.

A capa de Malmequeres que vemos agora não foi a imaginada inicialmente. “Pensámos num carro, para dar a ideia de viagem. Um carro com balões dentro” – nisto não pensaria Bukowski. Mas a imagem faria todo o sentido para Chinaskee e um trio de camponeses, os quatro de malmequeres na mão a chamarem-nos para viajar com eles. Não teríamos razões para dizer que não. Não temos. 

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