Portugal pode pedir desculpas? Quantas vezes forem necessárias
O que está em causa é a relação entre os portugueses e os seus próprios valores, não o que devem aos africanos.
Recentemente, participei num debate interessante no museu etnológico de Hamburgo sobre a relação entre o colonialismo e a ciência. O pano de fundo imediato para esse debate foi uma discussão bem acesa em Hamburgo e Berlim em torno da toponímia “colonial” e, mais particularmente, em torno de uma exposição de esculturas do Benim pilhadas por ingleses durante a ocupação colonial da Nigéria. O auditório estava cheio; mais de 150 pessoas, na sua maioria de idade já avançada, muitas delas com um interesse genuíno em entender o que está em questão nestas discussões.
Confesso que tenho alguma dificuldade em participar neste tipo de discussões. Há um certo sentido em que elas não me dizem respeito, sobretudo quando ocorrem na Europa. Não gosto de fazer o papel de representante das “vítimas”, situação em que sou colocado pelo contexto da discussão. Isso incomoda-me porque tem o efeito perverso de me retirar a palavra. Obriga-me, por exemplo, a confundir a condição de vítima com superioridade moral, mas no momento exacto em que eu assumo essa superioridade aparece alguém que me recorda as atrocidades cometidas hoje pelos meus patrícios africanos. Isso estilhaça completamente toda a minha veleidade moral.
A posição que defendi foi simples. Não existe, para mim, um “conhecimento colonial” se com isso nos referimos apenas à instrumentalização do conhecimento científico para os fins da colonização. O “conhecimento colonial” que conta para mim é uma postura intelectual que nos obriga a racionalizar perante a incongruência entre o que fazemos e o tipo de valores que defendemos. Ninguém escapa a essa incongruência.
Kant defendeu a escravatura com recurso à ideia de que os negros não serviam para mais nada; mesmo quando Georg Forster, que tinha viajado pelo mundo, lhe falou dos outros, como eram e em que circunstâncias eram obrigados a viver, Kant insistiu que sabia melhor; só mais tarde é que se revelou horrorizado com a sorte dos negros, mas algo me diz que isso se deveu ao facto de essa atitude condizer melhor com o argumento que ele tentava desenvolver sobre a “paz eterna”.
John Locke também defendeu a escravatura, mas na base do argumento segundo o qual os escravos teriam perdido o direito à liberdade por terem sido derrotados em “guerras justas” (guerras para espalhar o cristianismo).
Não há dúvidas que estas duas mentes brilhantes viram as coisas com os olhos do seu tempo. Mas hoje, quando um herdeiro dos privilégios estruturais que o tipo de práticas que elas defenderam ajudou a construir é confrontado com as condições em que o seu bem-estar foi historicamente construído, como deve reagir? Aqui a questão, para mim, não é só científica. É moral.
Você é herdeiro de uma cultura que se define por um conjunto de valores que ela própria não soube respeitar de forma consequente e é confrontado com isso; como reage? Encolhe os ombros e diz que foi do tempo, ou pior ainda, que os próprios escravos foram vítimas das suas próprias sociedades?
Há algo de profundamente errado nessa reacção, pois ela não constitui resposta à questão central. E a questão central não é se alguém que também pratica a escravatura, por exemplo, merece o nosso dó quando também é vítima da escravatura. A questão é como você se relaciona com os seus próprios valores que o impedem de defender ou promover esse tipo de práticas.
O debate de Hamburgo veio-me à cabeça ao ler um texto da autoria de um historiador e romancista português, João Pedro Marques, a propósito da campanha que se tem feito no seu país em prol de um pedido oficial de desculpas por parte de Portugal. Ele não concorda com isso e pergunta, retoricamente, quantas vezes o país precisa de pedir desculpas. A minha resposta é: tantas quantas forem necessárias.
O articulista não parece compreender o alcance ético do que a questão do pedido de desculpas levanta. Ele parece partir do princípio de que Portugal deve pedir desculpas aos africanos. Mas não é isso que está em questão, pelo menos para mim. Portugal deve pedir desculpas a si próprio por ter violado os seus próprios valores. O pedido de desculpas renova o seu compromisso com esses valores.
Ele não pode compreender a questão simplesmente porque discute o assunto com base em pressupostos problemáticos. Primeiro, começa por descaracterizar a posição de quem exige o pedido de desculpas com recurso à ideia de que quem assim exige o faz a partir do argumento da humildade. Apesar de os africanos também terem praticado a escravatura, os portugueses devem pedir desculpas por humildade. Mais uma vez, o que está em questão aqui é a relação entre os portugueses e os seus próprios valores, não o que devem aos africanos.
Segundo, ele elabora um argumento curioso que sugere que a abolição da escravatura constituiria em si um pedido de desculpas. Pode haver casos de indivíduos que, certamente, ficaram horrorizados. Eu sou fã, por exemplo, de Joaquim Nabuco, um dos maiores abolicionistas brasileiros. Nabuco virou-se contra a escravatura com base no seu ideal político liberal (que não impediu John Locke de defender o contrário), mas ele também lamentava o facto de a escravatura, assim como a presença de africanos no Brasil, terem contribuído para “corromperem” a cultura e raça europeias.
Mesmo em Inglaterra, onde o abolicionismo foi mais forte, razões económicas é que ditaram o fim da escravatura. A riqueza que os donos de plantações tinham adquirido tornara-os muito poderosos na política britânica. Isso fez com que fossem alvos de políticas proteccionistas que simplesmente prejudicavam a industrialização por manterem os camponeses cativos em Inglaterra. Sem o fim das famosas “leis dos cereais” (corn laws) que protegiam o monopólio dos senhores das plantações não teria havido abolição nenhuma em Inglaterra.
Terceiro, ele cai no erro que discuti brevemente mais acima de considerar que algo se justifica quando a vítima também o pratica. Como os africanos também escravizavam, então estão desculpados aqueles que escravizaram os africanos. Mais uma vez: essa não é a questão. A questão é se os valores que eu defendo me permitem fazer certas coisas. Só isso. Não interessa o que os outros fazem. Não iria insistir nesta questão se ela não estivesse relacionada com o mal-estar que sinto sempre que sou convidado a participar neste tipo de discussão.
Há quem ache que um académico não-europeu seja uma traição à sua cultura por emular formas de produção de conhecimento que sempre lhe foram hostis. Eu estou ciente das limitações teóricas e conceptuais das ciências sociais em virtude de terem a sua origem num lugar, tempo e contexto bem específicos. Tenho tentado reflectir isso no meu trabalho.
Mas é importante para mim identificar o lado ético que serve de pano de fundo para a actividade científica, nomeadamente a promoção da dignidade humana. Rejeito a simpatia de Locke pela escravatura, mas defendo o ideal de liberdade que ele inscreve no conjunto de bens que a democracia deve defender. Se a sua defesa da escravatura contradiz esse desiderato, bom, o problema é dele. Eu continuarei a defender esse ideal.
Mas aqui é onde está o problema. Quando os herdeiros “naturais” da cultura que diz ter produzido esses valores se recusam a renovar o seu compromisso com esses valores, eles colocam sobre mim, como académico não-europeu, a responsabilidade de defender esses valores. Parece-me injusto. Na verdade, é duplamente injusto porque primeiro sou herdeiro dessa injustiça histórica e, segundo, ainda tenho que ir em defesa do que me oprimiu.
Portugal e Europa podem pedir desculpas quantas vezes forem necessárias para não só renovarem o seu compromisso com os seus valores, mas também para dar bons argumentos aos não-europeus que gostariam de olhar para esses valores sem cinismo. O assunto não tem nada a ver com os africanos, no fundo. Tem a ver com os europeus. E disse isso também nesse debate em Hamburgo.