Novos sonâmbulos ibéricos
Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício.
Há precisamente três anos escrevi um texto, “Os novos sonâmbulos”, publicado no Sol, que tinha como ponto de partida um dos mais importantes ensaios sobre os motivos que conduziram à Grande Guerra de 1914-18. Christopher Clark mostrava aí até que ponto os dirigentes internacionais se tinham comportado como sonâmbulos (é, aliás, o título do livro) nessa caminhada para o abismo que culminaria na maior catástrofe da história europeia antes da Grande Guerra seguinte. Ora, essa intuição genial e absolutamente certeira do sonambulismo político acabaria por revelar-se perfeitamente ajustada à análise de outros fenómenos mais recentes.
Nesse artigo de 2014, Os Sonâmbulos de Clark apareciam reencarnados na crise da Ucrânia, depois de o terem sido na invasão do Iraque ou no terramoto financeiro de 2008, sem esquecer a forma como foi gerido o problema das dívidas soberanas na Europa e, em particular, o caso grego, através de uma política cega de austeridade punitiva (a que Portugal também esteve submetido).
Ora, os sonâmbulos estão hoje de regresso — se é que o não estiveram sempre, afinal — através desse caso-limite que é Trump, do “Brexit”, das ameaças de um conflito nuclear entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos ou, ultimamente, do divórcio anunciado entre a Catalunha e Espanha. Este derradeiro exemplo é, de resto, uma ilustração acabada, embora ainda relativamente benigna, da tese de Clark sobre o sonambulismo que fez desencadear a primeira Grande Guerra. Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício, não cuidando do risco irreparável dos passos que davam sem poderem voltar para trás ou perder a face. Chegou-se, assim, a ultrapassar a fronteira da racionalidade, onde a paz civil parece agora dependente da capacidade de persuasão que a mobilização popular através do território espanhol e catalão conseguir afirmar contra o irremediável.
Vizinhos ibéricos, é natural que o drama catalão nos interpele, embora seja de temer a preponderância das emoções — e do empolamento dos afectos — sobre a razão. Aliás, num registo bem mais pacífico, felizmente, os recentes resultados autárquicos já precipitaram os dois partidos perdedores das eleições numa deriva de sonambulismo.
Simultaneamente refém da “geringonça” e da hora da verdade do seu inevitável declínio histórico — a que foi conseguindo sobreviver enquanto os seus congéneres europeus desapareciam do mapa —, o PCP parece perdido na encruzilhada. É um sonâmbulo incapaz de perceber que o seu agressivo ressentimento pós-eleitoral contra socialistas e bloquistas apenas reflecte o temor de encontrar-se num beco sem saída.
Já o PSD volta a defrontar-se com uma das suas cíclicas crises de identidade que têm origem nos próprios genes do partido, dividido entre uma social-democracia mítica, nunca verdadeiramente encarnada — e estando esse espaço ocupado pelo PS —, e um liberalismo sem doutrina verdadeiramente assumida. Não é por acaso que a sigla PPD/PSD continuou a ser invocada por personagens tão diversas como Santana Lopes e Alberto João Jardim, ou ainda que no deserto das ideias que hoje impera no partido já se sinta crescer, como alternativa de sobrevivência, a tentação populista. Sonâmbulo, ainda em busca de si mesmo, o PPD/PSD nunca resolveu o seu drama original de que, aliás, Sá Carneiro foi o emblemático protagonista. E as sucessivas (e calculistas) desistências na corrida à sucessão de Passos Coelho são também um reflexo desse drama original.