Na próxima vez que o primeiro-ministro falar ao país já não terá Macau atrás
O PÚBLICO acompanhou a renovação das obras de arte da Residência Oficial do Primeiro-Ministro, a cargo de Serralves. Sai a pintura académica e entra a arte contemporânea.
A directora do Museu de Arte Contemporânea de Serralves pede-nos para imaginarmos um primeiro-ministro com uma gravata vermelha. É a cor complementar de todo o verde que vemos na grande pintura de João Queiroz, acabada de instalar na parede sobre um sofá de dois lugares, também ele verde, onde o primeiro-ministro costuma sentar os partidos quando os recebe na Residência Oficial de São Bento, em Lisboa. “Ficará perfeito”, comenta a sorrir Suzanne Cotter, na sala principal do piso 0 da residência.
Mas a directora esclarece imediatamente que não se preocupou com as cores dos sofás da chamada Sala da Lareira e que esta não é uma operação decorativa, mas parte da vontade de António Costa em mostrar obras de arte que sejam contemporâneas na Residência de São Bento. A directora não sabia até à conversa com o PÚBLICO que a pintura de Queiroz vai estar num dos ângulos mais fotografados pela imprensa, aquele que até agora tinha como pano de fundo uma tapeçaria em estilo rococó, emprestada a São Bento pelo Palácio Nacional da Ajuda ainda no tempo de António de Oliveira Salazar, o líder do Estado Novo que inaugurou na primeira metade do século XX o Palacete de São Bento como casa do primeiro-ministro.
“Pensei mais que esta paisagem de Queiroz, todo este verde, fazia uma boa ligação com o jardim que se vê através das janelas do outro lado da sala. Trabalhámos mais a tipologia das salas, as dimensões das obras, os planos das paredes e a luz”, diz-nos Suzanne Cotter, explicando que uma das dificuldades neste trabalho é as paredes não serem muito grandes, ao contrário das obras da Colecção de Serralves, com esta paisagem de Queiroz, por exemplo, a atingir quase os três metros de comprimento.
“Quando vimos as fotos não tinha ideia da escala da pintura. Fica aqui maravilhoso”, comenta Rita Faden, chefe de gabinete do primeiro-ministro, que acompanhava a montagem na semana passada.
Isto não é uma exposição
Serão devolvidas 35 obras de arte às instituições de origem — do Museu do Chiado ao Museu de Arte Antiga, passando pelos palácios da Ajuda e de Sintra, entre outras —, enquanto entram 26 obras do Museu de Serralves, que deverão ficar um ano em exibição, onde podem ser vistas a partir de quinta-feira, nesta iniciativa intitulada “Arte em São Bento – Serralves 2017”, inaugurada para coincidir com o feriado de 5 de Outubro, com entrada gratuita, e visitável pelo público das 15h30 às 19h. Depois, é todos os domingos, das 10h às 17h, até ao final do ano, sendo possível igualmente visitar os jardins, já abertos ao público desde Junho do ano passado.
Suzanne Cotter, que começou a pensar na operação arte em São Bento em Maio, está habituada a programar no espaço branco das galerias, o chamado “white cube”, sem se ter de preocupar com móveis, que em São Bento são muitos e há para todos os gostos, nem com os enquadramentos dos fotógrafos. “Não pensei nos móveis e vou tentar ignorá-los, porque se começar a pensar nisso é demasiado intimidante. Isso é a função de um designer de interiores.”
Na Residência de São Bento, onde há vontade de mudar também a decoração, não fizeram coincidir os dois momentos para mostrar, exactamente, que esta espécie de embaixada do Museu de Serralves em São Bento, que tem mostrado a sua colecção um pouco por todo o país, não está incluída numa renovação de interiores.
Rita Faden explica ao PÚBLICO que houve um processo de conversa com António Costa e com São Bento sobre a escolha das obras de artes, “antes, durante e depois” da sua instalação no espaço, mas que além do primeiro-ministro ter sublinhado que gostava de ver representados artistas jovens e mulheres, “a curadoria é de Suzanne Cotter”.
A obra sobre a lareira
A única obra discutida por Serralves, a equipa do gabinete e o próprio primeiro-ministro foi a que ficará colocada sobre a lareira que dá o nome à sala e que mostra como esta é a área mais importante da também chamada Sala de Audiências. “É uma perspectiva muito importante, em termos de imagem, porque o primeiro-ministro geralmente fala aqui”, explica Suzanne Cotter.
O que acabou por ser escolhido é radicalmente diferente da pintura que até agora podíamos ver aqui. Provavelmente uma das obras mais fotografadas pela imprensa portuguesa nos últimos anos, poucos conseguem lembrar-se do que representa.
Quando vimos em directo a demissão de José Sócrates em Março de 2011, em que o então primeiro-ministro falou ao país na Residência Oficial, lá estava aquela foz misteriosa atrás, que olhámos por um segundo para novamente nos focarmos em algo mais dramático como o discurso. Parecia o Douro, mas de um ângulo diferente, com um vale muito mais encaixado. Dois anos depois, já com Passo Coelho em São Bento, a paisagem surgia novamente como cenário durante o anúncio das novas medidas de austeridade feito em 2013.
Se durante estes discursos fotógrafos e operadores de imagem tivessem conseguido mostrar a placa com o título e o nome do pintor, teríamos percebido que os chefes do Governo de Portugal estavam a discursar em frente a uma paisagem de Macau, actualmente território chinês. Intitulada Porto Interior de Macau, o quadro mostra a foz do rio das Pérolas e foi pintada por Fausto Sampaio em 1936, quando aquele território fazia parte do império português.
Apesar de o actual primeiro-ministro costumar escolher outros cenários para fazer as suas declarações ao país — o nosso arquivo fotográfico mostra-o no exterior, em frente à porta principal da Residência Oficial, quando fez a comunicação sobre o fim do défice excessivo —, a verdade é que a Sala da Lareira continua a ser o espaço mais formal da residência de São Bento, onde António Costa recebe os seus homólogos e os chefes de Estado estrangeiros.
Se Costa escolher a partir de agora falar no interior à frente da lareira, já terá atrás de si uma pintura monocromática, amarela, pintada por Ângelo de Sousa em 1989. Segundo Rita Faden, pensou-se noutra obra, mas esta tinha uma composição muito elaborada.
Costa, diz Suzanne Cotter, preferiu fazer uma mudança que a surpreendeu e não quis conservar nenhuma das obras antigas. Da tapeçaria à obra de Queiroz, da paisagem de Macau ao abstraccionismo de Ângelo, é uma grande mudança em termos artísticos, porque até agora, nas três salas do piso 0 onde são recebidas as visitas mais importantes – além da Sala da Lareira, há ainda a Sala dos Embaixadores e a Sala de Jantar – não se encontrava qualquer obra contemporânea, mas antes pintura antiga de gosto académico, algumas melhores do que outras, mas muitas delas escurecidas pelo tempo. A mais recente era mesmo a paisagem de Macau de Fausto Sampaio (1893-1956).
Uma das coisas que ainda faltam decidir, com António Costa em viagem fora do país mas a ser informado por sms, é se as obras de Serralves devem exibir aqui as tabelas que normalmente encontramos numa exposição, com informações como o título, a autoria e os materiais. Como as sete salas onde vão ser mostradas, além do hall e das escadas, são espaços de trabalho, as pessoas que vêm às reuniões podem gostar de saber quem é o autor sem ter de perguntar nada a ninguém, defende Rita Faden. As tabelas já feitas estão nas mãos de Kathleen Gomes, a nova assessora cultural de António Costa, e mostram nomes que só na Sala da Lareira vão das pinturas de Julião Sarmento, Sofia Areal e René Bertholo às fotografias de Pedro Henriques, passando pelos desenhos de Jorge Queiroz.
Um pouco depois, discute-se se o lugar definitivo de uma obra de Paula Rego será na Sala de Jantar, em diálogo com um gigante José Loureiro. Os reposteiros de veludo, também vermelhos, não estão a facilitar o enquadramento desta obra densa que precisa de espaço para respirar e talvez seja melhor, hesita Cotter, pôr naquela parede uma obra em plexiglass de Lourdes Castro.
As novas obras de Serralves não chegaram a entrar no gabinete de Costa, situado no piso 1 da residência, onde já estava uma pintura de Menez. Mas na antecâmara podemos apreciar até ao final do ano obras de Ana León e Sónia Almeida, duas mulheres, com idades e percursos diferentes, entre Paris e Boston.
Uma estranha iconografia
Tal como as outras 35 obras, a paisagem de Macau de Fausto Sampaio vai agora regressar ao seu museu de origem, neste caso o Chiado, em Lisboa. Aí, explica-nos ao telefone Maria de Aires Silveira, conservadora de pintura do museu, ingressará nas reservas, longe dos olhares do público.
Conhecido como “pintor do império”, Fausto Sampaio foi muito valorizado no Estado Novo e viu 90 pinturas suas serem exibidas na Exposição do Mundo Português em 1940: “É um caso curioso porque deve ser um dos únicos pintores que consegue fazer um périplo por todas as ex-colónias. Tem umas pinturas em que as ruas de Macau parecem o Bairro Alto com a roupa pendurada. Mas a ideia era mesmo essa, que o império tivesse uma iconografia comum desde Lisboa ao Oriente, uma visão ao serviço da uniformização da identidade nacional, ao mesmo tempo que se mostrava o exotismo do império.”
A conservadora afirma que o quadro foi emprestado pelo Museu do Chiado em 1989 para o gabinete do primeiro-ministro na residência, quando Cavaco Silva estava em São Bento. Só em 1995, quando Maria de Aires Silveira visitou São Bento, já com António Guterres como primeiro-ministro, é que transitou para o lugar onde esteve até agora sobre a lareira, o sítio mais nobre da residência. Nessa altura, Macau ainda estava sob a administração portuguesa — foi Guterres que em 1999 fez a transição do território para a China.
Mas desde então ficou em São Bento sobre a lareira, talvez um pouco esquecido, numa curiosa escolha iconográfica (e talvez inconveniente) para um espaço de representação do Governo de Portugal.
Para o ano, será mostrada outra colecção em São Bento, a anunciar pelo primeiro-ministro a 5 de Outubro.
Artigo corrigido: René Bertholo, e não Eduardo Batarda, é um dos artistas escolhidos para a Sala da Lareira