}

A desresponsabilização institucional e a normalização do desvio: o caso da ANPC

Para bem do país e da segurança das populações, há que mudar rapidamente a lógica de funcionamento da Proteção Civil.

As situações extremas revelam como funcionam as instituições e devem ser analisadas como indicadoras do tipo de Estado, do tipo de contrato social e de sociedade civil existentes, e da capacidade de mobilização das pessoas, dos grupos sociais e das comunidades. O incêndio de Pedrógão Grande de 2017 revelou a lógica de funcionamento da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) como instituição e a sua dinâmica organizacional. O relatório elaborado por esta entidade a pedido do primeiro-ministro e do Governo está marcado por uma lógica autojustificativa e legitimadora, sem qualquer indício de ativação de um processo de aprendizagem consequente com a responsabilidade da sua atuação para a segurança dos cidadãos e cidadãs em situações de risco ou de catástrofe em Portugal.

No que concerne aos incêndios florestais em Portugal, como eu já referi numa nota publicada em agosto de 2016 na página do Observatório do Risco do Centro de Estudos Sociais da Universidade Coimbra, temos em Portugal uma cultura do fogo, presente tanto na população como nos responsáveis políticos e institucionais, de normalização e quase banalização dos incêndios florestais, consagradas, por exemplo, na chamada “época dos incêndios”. Sociologicamente, estamos perante o que Charles Perrow chamou de acidentes normais, associados à complexidade dos sistemas e ao erro humano, relacionados com a capacidade organizativa e não com as tecnologias disponíveis. Ora, a capacidade organizativa aperfeiçoa-se com a análise rigorosa dos erros e a implementação de sistemas de decisão fiáveis, como aconteceu quando a NASA, após a explosão do vaivém Challenger em 1986, chamou Diane Vaughan para a realização de uma análise organizacional crítica da mesma, que resultou no livro The Challenger Launch Decision e na proposta sustentada do conceito sociológico de normalização do desvio.

As consequências humanas do incêndio de Pedrógão Grande parecem ter alterado esta cultura do fogo junto das populações, mas não junto dos políticos e dos dirigentes institucionais. Em todos os incêndios subsequentes apercebemo-nos de uma mobilização autónoma das populações, de uma maior disponibilidade para proceder e aceitar a evacuação de pessoas das aldeias em risco e uma perceção clara das possíveis consequências dos eventos em curso. Já nas declarações dos políticos e dos responsáveis institucionais, bem como nos relatórios de entidades como a GNR e a ANPC, destaca-se a normalização do desvio por invocação de condições excecionais e a atribuição de causalidades a forças e processos externos, sem assunção de responsabilidades.

No caso da ANPC, a adoção de uma estratégia de comunicação do risco centralizada, numa litania quase obsessiva de números redundantes com os constantes da sua página oficial, reforçou o afastamento desta entidade das populações e a sua lógica autoritária de atuação.

Centremo-nos agora no relatório da ANPC sobre o incêndio de Pedrógão Grande. A linguagem é assética e, na descrição pretensamente objetiva e pautada pela fita do tempo e pela correta execução dos procedimentos e das diretivas operacionais, assume-se a normalidade, pela excecionalidade do incêndio em causa, de os pedidos de socorro das pessoas e das populações não serem atendidos por problemas de comunicação ou pela inexistência de meios disponíveis. Em cada caso, com poucas exceções, é sempre realçado a negrito que não houve vítimas e segue-se a descrição do número de habitações destruídas ou danificadas.

Esta frieza descritiva, num discurso institucional autocentrado, causa perplexidade quando em todo o relatório não há uma única referência à aldeia de Nodeirinho, onde perderam a vida no seu interior ou nas suas imediações 11 pessoas. Estranha-se que nos pedidos de esclarecimento posteriores dos governantes tal caso não tenha sido relevado.

Por outro lado, se o incêndio se iniciou, segundo relatos populares, cerca das 14 horas (e não às 14h43, como figura no relatório da ANPC) e iria causar a maioria das vítimas mortais entre as 19h30 e as 20h45, estamos a falar de um desfasamento de cerca de cinco a seis horas. Cabe perguntar: qual o protocolo ou a diretiva que regulamenta em Portugal a evacuação das populações? Por exemplo, no caso dos grandes incêndios florestais na Austrália em 2009, como é bem demonstrado nos escritos exemplares de Joshua Whittaker, toda a doutrina anterior que se baseava na filosofia do Prepare, Stay and Defend Your Property or Leave Early (“Preparar-se, Ficar e Defender a Sua Propriedade ou Sair Cedo”) foi revista e modificada, acentuando-se agora de forma clara a saída precoce das populações como a estratégia de mitigação do risco mais segura. Tal implica a capacidade de liderança e conhecimento rigoroso do comportamento das populações. 

A desresponsabilização institucional e a normalização do desvio atinge o seu paroxismo na reflexão final que a ANPC apresenta no seu relatório. Cito: “O incêndio de Pedrógão Grande foi uma revelação evidente de um problema existente em Portugal e que não poderá, de forma alguma, ser resolvido com recurso exclusivo à resposta operacional (combate).”

Este epítome, que remete para causas estruturais e para a heteronormatividade, indicia o fechamento e a cegueira institucional da ANPC. Para bem do país e da segurança das suas populações há que proceder rapidamente a uma análise e a mudanças na lógica de funcionamento, na retórica institucional e na estratégia de comunicação da Autoridade Nacional de Proteção Civil.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar