Vícios intrínsecos, virtudes artísticas, it's sooo Miami
Excessos, hedonismo, kitsch numa paisagem de águas turquesa e palmeiras sob um sol (quase) constante. Miami mantém a sua imagem de marca cristalizada no distrito Art Déco de Miami Beach, mas está a piscar o olho à cultura. A mistura é algo a que os locais se referem como "it's sooo Miami".
Há uma ironia iniludível em saber que quem “salvou” South Beach (SoBe) foi um casal comunista – conheceram-se na Young Communist League e ele esteve mesmo na Lista Negra de McCarthy. “Foram eles que deram o modelo de negócio que permitiu aos antigos hotéis Art Déco não só sobreviver como tornarem-se a imagem de marca de Miami”, explica o guia Joel Levine. E quem diz Miami diz, na realidade, Miami Beach, a ilha-cidade a oito quilómetros da cidade-mãe, atravessada a Baía de Biscayne, um dos muitos braços de água que fazem desta zona um quebra-cabeças geográfico. Na realidade, não foi o casal, foi a mulher, Barbara Capitman, que se dedicou de corpo à Art Déco de SoBe depois da morte do marido, poucos anos após terem trocado Nova Iorque por Miami: “Ensinou os capitalistas a fazerem dinheiro com o património”.
Na verdade, foi o filho do casal, Andrew Capitman, que pôs em prática as ideias dos pais, trocando Wall Street (durante alguns anos) para se unir à mãe não só na criação da Miami Design Preservation League (MDPL), numa altura em que o destino dos velhos hotéis parecia ser a sua demolição, como no modelo de desenvolvimento da zona que, entretanto, haviam já conseguido que fosse reconhecida como de interesse histórico, um feito inédito para um conjunto do século XX.
Começaram por comprar hotéis na primeira linha de praia, na icónica Ocean Drive, e a instalar cafés e restaurantes nos rés-do-chão. “As pessoas só dormiam aqui”, explica Joel Levine, que como todos os guias da MDPL é voluntário. Mas isso já faz parte da história de Miami Beach, uma história ao estilo how the west was won, sendo que aqui estamos a east e numa faixa estreita de terra (12 quilómetros de comprimento e 1,5 de largura) que existe como entidade municipal apenas desde 1915.
E é assim que actualmente chegamos a Ocean Drive para uma sucessão de hotéis, com cafés, bares e restaurantes com esplanadas a transbordarem para o passeio congestionado pelos visitantes de uma manhã de sábado de meados de Agosto. O inglês e o espanhol competem pelo domínio linguístico (ganha o spanglish), há descapotáveis a passar com música à solta – a banda sonora inclui hip hop, sim, mas muita salsa, merengue, reggaetón, a banda sonora mais constante nas ruas, reflectindo toda a influência latina (e caribenha) da cidade; à noite, os clubes fecham-se no house e techno –, há motas extravagantes.
No Lummus Park, que acompanha Ocean Drive do lado da praia, passam bicicletas, trotinetas, patins, segways entre as famosas palmeiras que fazem parte da imagem de marca de Miami. O sol é inclemente, a humidade implacável – e Joel Levine um dínamo de energia que não nos dá margem para descanso.
O sonho de uma ilha tropical
Nós chegamos a SoBe vindos de Mid Beach – Miami Beach divide-se em South, Mid e North Beach –, zona onde os hotéis ocupam a primeira linha de mar. Pelas ruas – avenidas – prédios tapam as praias, com entradas aqui e ali; dos hotéis ao areal o percurso é apenas atravessar um passadiço (The Atlantic Way), com pérgolas abundantes, que acompanha a costa, ladeado por plantas nativas, parte de um projecto de preservação. Depois, o areal e as águas turquesas, o oceano Atlântico em versão piscina aquecida – nós, que só entrámos ao final da tarde, sentimos a água mais quente do que o exterior.
Porém, a praia, que é a principal razão da existência de Miami Beach é, para nós, apenas escapadelas num programa de visitas e experiências em catadupa. O tempo que passamos em Miami foi, em termos práticos, 24 horas. Um dia, portanto, em que, entre Miami Beach e Miami, muito ficou de fora. Não, não fomos a Little Havana, tão pouco a Little Haiti; os museus ficaram todos de fora, excepto o pequeno museu da MDLP – e, sim, Miami tem museus de classe mundial (e até uma extensão da Art Basel que chega a cada Dezembro). Vejam-se o Bass Museum of Art, o Museum of Contemporary Art e o Wolfsonian, o Miami Art Museum, o Frost Art Museum, que reúnem colecções de arte, objectos decorativos e de design, ou o History Miami e Jewish Museum (numa antiga sinagoga Art Déco), que contam a história desta cidade de imigrantes.
E são muitos os que aqui continuam a buscar porto de abrigo. Ainda que os cubanos sejam os mais mediáticos (curiosamente, um dos mais conhecidos, o escritor Reinaldo Arenas, considerou Miami “uma península estéril e pestífera... tentando tornar-se o sonho de um ilha tropical para um milhão de exilados", hordas de imigrantes da América Latina (incluindo brasileiros), mas também da Rússia e da Índia, por exemplo, continuam a chegar e fazer da cidade uma festa multicultural.
Não podemos, contudo, contrariar a pertinência do início da visita: em South Beach e à boleia do seu Distrito Art Déco ficamos a conhecer a história de como um território inóspito se tornou numa meca do turismo, tornada meca de reformados, tornada meca da criminalidade, tornada meca da moda, tornada na meca latino-americana dos Estados Unidos.
Uma versão condensada de uma epopeia que chega aos nossos dias embrulhada numa atmosfera que tem tanto de glamour como de kitsch e, novamente, cada vez mais, turismo. Sol, palmeiras, águas cristalinas; corpos esculturais e corpos transbordantes em transparências; carros ostensivos, néons e art déco; mansões à beira-água e iates; muito bling bling (verdadeiro ou só para o fim-de-semana) e muita pose. Excesso, hedonismo, voracidade – quem faz disso um modo de vida, quem o procura (para vivê-lo ou apenas fotografá-lo).
Miami “sofre” de um excesso de exposição mediática: chegamos aqui com uma série de ideias pré-concebidas, E, como em qualquer outra cidade, encarrega-se de confirmar (ou mesmo reforçar) umas e de desmistificar outras. Uma confirmada imediatamente é incontornável – o calor em Agosto é muito e a humidade devora-nos como numa sauna ao ar livre (não surpreende numa cidade que tem em Dezembro o mês com temperaturas mais baixas sendo que estas rondam os 26 graus).
Dos coqueiros aos hotéis
É neste ambiente que pomos pés a caminho em SoBe. O ponto de encontro é a sede da MDPL (Ocean Drive com a 10th Street), onde um pequeno museu nos leva por objetos de design de décadas passadas. Daqui partem as visitas guiadas: podem ser feitas com guia, como nós fizemos ou com áudio-guias; há também visitas temáticas, a Jewish Miami Beach Tour e a Gays and Lesbians.
Joel Levine é tão claro nas explicações como apressado na ânsia de nos levar aos pontos mais importantes deste pequeno território que constitui a maior concentração de Art Déco do mundo (800 edifícios classificados em cerca de cinco quilómetros quadrados). Fez o mesmo percurso de tantos outros norte-americanos – depois da reforma deixou Nova Iorque e rumou a sul. Mantém, diz, o sotaque de Brooklyn; reforçou o seu amor pelo design (alguns dos objetos do museu da MDPL são da sua colecção particular) e alargou-o à arquitectura.
Antes, uma breve história de Miami Beach, uma língua de terra onde o homem ajudou a natureza (selva) a compor uma ilha-barreira a cerca de oito quilómetros da baixa de Miami, onde, aliás, viviam os mayaimi, que deram nome à cidade. O que agora conhecemos como Miami Beach era um território tão inóspito que mesmo os nativos só aqui vinham para pescar – serpentes, jacarés, ratos e tantos mosquitos que por vezes nem se via o sol. No final do século XIX, do Norte vieram os irmãos Lumm com a ideia de aqui se plantar coqueiros – foram devorados por mosquitos e coelhos; mais tarde, outro empreendedor setentrional, John Collins, introduziu os abacates. “Cada abacate custava um dólar”, conta Joel Levine, “o meu avô chegou [aos EUA] em 1907 e ganhava um dólar por dia... Era muito caro.” O negócio parecia querer descolar e toda a família de John Collins se mudou de Nova Jérsia para a Florida. Só havia um problema: o transporte através da Baía de Biscayne até Miami. Collins pensou em construir uma ponte, “mas ele era rico, não era bilionário”. Então, entra em cena um bilionário de Indiana, Carl Fischer. Interessou-se pela “ponte para nenhures”, quis investir em troca de terra. Ficou com um terço da ilha, a ponte concluiu-se em 1913 e Fischer começou a construir hotéis, mansões, campos de golfe, pólo e ténis para os seus amigos – bilionários, bem entendido.
Em 1915 nascia oficialmente Miami Beach (que na sua toponímia incorpora o nome de todos estes pioneiros) e interrompeu-se a sua construção devido à I Guerra Mundial – em 1921, porém, os hotéis já estavam por todo o lado; e, em 1925, a Lincoln Road já era a segunda mais luxuosa do país, só ultrapassada pela nova-iorquina 5ª Avenida. Tudo parecia correr bem até que em 1926 o “grande furacão”, como ficou conhecido (de categoria cinco – onde é que já vimos isto?), deixa tudo destruído. Reconstrução e a Grande Depressão: em 1929 todo o investimento pára. Até que chega o New Deal de Roosevelt com o novo conceito de férias pagas e a classe média descobre Miami Beach. Quando se começava a duvidar da sua viabilidade, começa a explosão de construção de hotéis. “A maioria dos edifícios aqui foram construídos entre 1934 e 1941”, explica Joel Levine, em plena Ocean Drive. Esses são o coração do distrito Art Déco que têm a companhia de outros, construídos já depois da II Guerra Mundial e que, “décadas mais tarde”, foram classificados como Miami Modern, MiMo, um estilo típico destas paragens mas que floresce, sobretudo, em North Beach.
É a Art Déco, senhores
“Quando páro, devem olhar para trás de mim”, avisa Joel Levine. E o primeiro aviso vem junto de um edifício atípico, mas que representou a primeira vaga de construção em Miami Beach, o chamado “mediterranean revival” (revivalismo mediterrânico), com os seus “telhados vermelhos [telhas], as janelas e portas em arco, as varandas”. Um dos paradigmas desse tipo de construção é “a segunda ou terceira casa mais fotografada do país”, diz Joel, a antiga casa do estilista italiano Gianni Versace, à porta da qual este foi assassinado.
Vamos vê-la mais adiante (agora é um hotel boutique extremamente exclusivo), depois de já termos os olhos cheios de Art Déco que aqui em Miami Beach se adaptou ao clima e ganhou matizes tropicais. É na Ocean Drive, entre as ruas 10 e 15, que começa a maior exposição de edifícios onde a Art Déco se revela sobretudo nos hotéis, com a sua paleta de cores pastéis e as suas linhas simétricas a partir de uma “torre” central (verticalidade e horizontalidade), painéis decorativos mais ou menos intricados, baixos-relevos, “sobrancelhas” (pequenas palas sobre as janelas), ângulos arredondados, blocos de vidro, néons. E como este é, afinal, Tropical Déco, profudamente influenciado por motivos náuticos, vejam-se as janelas à laia de escotilhas, algumas linhas a lembrar navios, decoração marítima (fauna, flora e ondas). É aqui que se aprendem a declinar nomes de arquitectos que deixaram amplas marcas como Henry Hohauser e L. Muray Dixon.
O Hotel Congresso é um paradigma da simetria na sua fachada de três andares, cortada a meio por uma coluna triangular (“para parecer mais alto”) erguida a partir de uma pala que se projecta sobre a entrada do edifício à laia dos antigos cinemas e com “sobrancelhas”.
Este era o típico hotel dos anos de 1939, construído para as pessoas passarem tempo fora dos quartos, tinha casas-de-banho comuns. Joel Levine vai falando da evolução social para introduzir o estilo MiMo, que chegará na década de 1950, quando a evolução tecnológica, com o advento da televisão, exigia mais conforto nos quartos. Assim vemos edifícios já com paredes de vidro e construídos perpendicularmente à praia, para que a ventilação fosse mais eficaz e a luz inundasse tudo. No entanto, antes de chegarmos a essa década de ouro dos EUA, Miami Beach foi abandonada por veraneantes e ocupada pela Força Aérea, durante a II Guerra Mundial – e Joel Levine mostra uma foto em que o sogro surge em primeiro plano, fardado, com os hotéis atrás.
De volta a estes, vemos o Hotel Victor, com uns toques Bauhaus e uma piscina num deck ao nível do primeiro andar que foi construída em 2004 obedecendo às regras entretanto impostas para esta zona: as novas construções têm de ser compatíveis com as antigas. Neste edifício temos “o original e a imitação”, um “vertical, o outro horizontal”. Um pouco mais adiante, o Tides representa, talvez, o melhor exemplo de hotel de tema marinho com a entrada encimada por janelas-escotilhas. Neste, as visitas guiadas da MDLP podem entrar e assim vemo-nos a recuar no tempo, porque não só a decoraçãoo de dourados cromados faz parte do lobby, como o mar “entra” para assentar não só no balcão da recepção, feito de calcário com fósseis (e por isso protegido com vidro), como o chão desenha ondas, como num movimento de vaivém.
É tarefa árdua destacar hotéis porque a sucessão deles é quase ininterrupta. Desde o Colony, o mais antigo da zona e um dos primeiros nos EUA a usar o néon para atrair clientes e olhares (e andar na Ocean Drive à noite é um festival luminoso à custa destes – como disse um comediante norte-americano, “Miami Beach é onde o néon vai para morrer”), ao Carlyle (cenário do filme The Birdcage), ao Beacon, ao Boulevard e ao Cardozo, onde a MDPL funcionou brevemente no seu início e diante do qual, do outro lado da avenida, no Lummus Park, há um busto de Barbara Capitman. Estes são nomes históricos, como são o Cavalier, um favorito pessoal, decoração em estuques com mais cores e padrões a reflectir o fascínio que assolou o mundo depois da descoberta do túmulo de Tutankamon e de templos Maias.
Já não estamos na Ocean Drive, caminhamos para o “interior” para, na Collins Avenue, não deixarmos passar The Webster (outros dos nossos preferidos), originalmente um hotel, agora boutique multi-marca, com fachada exuberante tipicamente Art Déco e pintada de azul e branco com frisos rosa – não sabemos se é coincidência ou se fazem parte do “cenário” os dois carros antigos, pintados em cores fortes metalizadas, um azul e branco, o outro rosa e branco.
O Fairview Complex é uma amálgama de estilos: o edifício original é Art Déco e o do lado é MiMo, a uni-los uma pala que o guia interpreta como as boas-vindas do primeiro ao segundo, “um aperto de mão” – como se não bastasse, o edifício atrás, que fecha o complexo é moderno.
Miami Vice: do crime à gentrificação
De volta a Ocean Drive, o hotel Breakwater foi um marco na preservação da zona e na definição da imagem de SoBe. No seu topo, foi fotografada pelo lendário Bruce Weber a primeira campanha publicitária na zona, a do perfume Obsession, em 1985. Este foi o primeiro capítulo do caso de amor entre a publicidade (e os vídeos musicais) e SoBe; este foi o início da ligação duradoura entre entrelas da música e modelos com SoBe. Se há modelos ou estrelas entre a multidão escapam-nos – os únicos modelos que vemos, em todos os tamanhos e feitios, fazem questão em fotografar-se junto do termómetro-e-calendário Art Déco do outro lado da rua – 32 graus e ainda não são 11h.
Quando Weber fotografou esta primeira campanha publicitária, já Barbara Capitman e a MDPL tinham conseguido chamar a atenção do mundo para a necessidade de preservar esta área, que apesar de ter sido inscrita no National Register of Historic Buildings, não tinha a sua integridade garantida. Os proprietários podiam dispor das suas propriedades e houve batalhas importantes que acabaram com a destruição de alguns dos seus símbolos. Andy Warhol tinha pedido para visitar o bairro em 1981 e foi guiado pela própria Capitman, o artista Christo tinha feito uma intervenção na Baía de Biscayne, “embrulhando” 11 ilhas em tecido cor-de-rosa. E, entretanto, tinha sido começada a ser gravada uma série que ajudou a cristalizar uma certa imagem de Miami Beach em todo o mundo.
No início, a permissão para filmar Miami Vice não foi consensual. Já tinha havido experiências, a mais famosa o filme Scarface, com Brian de Palma a dirigir Al Pacino a protagonizar um refugiado cubano que chega a SoBe e torna-se um barão da droga – o local da cena em que um dos associados do personagem principal é desmembrado com uma motosserra, os Sun Ray Apartments, está em processo de remodelação. Infelizmente para as autoridades, o filme mimetizava a realidade de forma demasiado real. Diz-se em Miami que foi o dinheiro da cocaína que ajudou a erguer os arranha-céus, nos anos de 1970 e inícios de 1980, quando era a cidade com maior índice de homicídios do mundo.
E a partir dos anos de 1960, SoBe entrou em decadência com a mudança de paradigma de hotéis (substituídos por resorts), tornou-se local de habitação permamente de reformados vindos do Norte que antes aí passavam férias e de pessoas com poucos recursos económicos. E quando Cuba abriu as portas em 1980, de refúgio para quem chegava, entre eles muitos criminosos. Por isso, na altura, muitas vozes de protesto, entre as quais as do mayor, se fizeram ouvir: “A mensagem básica do filme parece ser drogas, homicídios e actividades criminosas”.
A produção do filme foi transferida para Los Angeles mas a realidade de Miami Beach continuou a ser mesma e um mayor com pendor mais “justiceiro” promoveu um programa secreto, conta Joel, em que quando se apanhava um criminoso este era espancado e deixado sem sapatos; à segunda vez atiravam-no ao rio (que é como quem diz, aos jacarés). O primeiro impulso do mayor “justiceiro” foi proibir as filmagens de Miami Vice até que viu aí oportunidade de ganhar dinheiro – se vinham turistas ver os locais de filmagens de Scarface, muitos mais poderiam vir à custa da nova série. SoBe voltou a mudar. Tornou-se moda e a tal não é alheia a participação de Gianni Versace como consultor, não só no guarda-roupa como nas cores. E estas tornaram-se uma obsessão, “pintavam-se paredes para combinar com a roupa dos actores”. “Foi ele que reintroduziu a paleta de cores, sunrise e sunset, em SoBe”, explica, contando que muitos edifícios tinham sido reduzido ao básico branco.
E no meio de tudo isto, onde ficou o sonho de Barbara Capitman, a avó da Art Déco? O filho respondeu numa entrevista ao MDPL: “Ela esperava que [SoBe] fosse preservado como um bairro que continuaria a ser confortável para as pessoas idosas. Um dos custos da preservação é que leva à gentrificação, subindo os preços e explulsando os mais velhos. Preservação sem gentrificação, isso era o que a minha mãe queria”.
A arte na rua e a arte do luxo
Mas Miami não é apenas Miami Beach, não é apenas praia, não é apenas o culto da ostentação que tantas vezes raia o mau gosto como se fosse uma competição com Las Vegas. Há uma espécie de avesso a tudo isso que floresce em Wynwood e se prolonga pelo Design District (Midtown Miami). O primeiro, numa antiga zona industrial (os têxteis eram reis), boémio, vivendo de arte de rua e de galerias mais alternativas; o segundo, um bairro novo construído por arquitectos de renome, servindo de centro comercial ao ar livre onde as marcas mais luxuosas se instalaram numa “ilha” de arquitectura moderna.
Chegamos a Wynwood sem nos impressionarmos. Passamos ruas sem vermos vivalma, armazéns de cimento, casario baixo, deslavado, por vezes arruinado, terrenos conquistados por ervas abandonados por detrás de redes tudo a emprestar um ar de desleixo e as únicas pinturas nas paredes são grafittis e tags próprios de zonas esquecidas e em depressão.
Só quando chegamos ao epicentro de Wynwood percebemos porque agora se acrescenta a este antigo bairro porto riquenho o epíteto de Arts District. Tudo começou em 2009 quando o mesmo homem que fez renascer o SoHo nova-iorquino, Tony Goldman, comprou um quarteirão no bairro e entregou-o a artistas e à restauração. “Ele viu o potencial para a classe criativa”, diz o nosso guia, Leo, também ele artista. Agora o quarteirão são vários quarteirões e a tendência é a expansão. Os murais vêem-se nas paredes de bares (algumas cervejarias artesanais), restaurantes ao lado de body art (tatuagens) ao lado de auto art (garagem para pinturas personalizadas nos carros), galerias (uma anuncia exposição de Botero), lojas de música, espaços de coworking, salões de cabeleireiros e barbeiros – um dos que nos ficou na retina, padrão geométrico a preto e branco que se vai desencontrando, ocupa o longo edifício do Junior & Hatter, lojas que se assumem como “boho indie cool”.
Contudo esta não é uma zona fácil, feita de muitas ruas anódinas onde aparecem murais em paredes arruinadas ou em parques de estacionamento mais ou menos improvisados – é num destes que vemos um trabalho do português Vhils, muito admirado por Leo. Mas não é o único.
Em Wynwood Walls há mais Vhils (pelo menos um mural e um trabalho na Goldman Global Arts Gallery – uma das galerias que se espalham também pelo espaço e que é um delírio de cores, temas e materiais: Vhils, por exemplo, apresenta-se em esferovite, num retrato de intricado rigor escultórico) e há trabalhos dos principais street artists do mundo. Este é o coração de Wynwood, uma espécie de galeria gigante ao ar livre, um museu de rua, vedado, onde os trabalhos vão mudando. Normalmente por altura da Art Basel, que desde 2002 tem uma extensão em Miami – diz-se por aqui que os artistas representados vêm para Wynwood, os compradores para SoBe.
O que vemos neste sábado à tarde, pode, portanto, não ser o que se verá daqui a poucos meses. Pouco é sagrado aqui (um “pequeno Banksy” foi pintado pela manutenção) mas há nomes consensuais que só serão removidos pela vontade dos próprios – e é Shepard Fairey, que se tornou conhecido pelo retrato em azul, branco e vermelho com o lema “Hope” de Obama na eleição de 2008, o exemplo mais ouvido e é dele a longa parede defronte do portão de entrada. David Choe é o sonho tornado realidade: o artista que fez um mural no Facebook escolheu ser pago em acções – quando a empresa entrou na bolsa, os seus 60 mil dólares passaram a valer 200 milhões.
É impossível nomear todos os artistas que aqui intervieram uma vez que são cerca de 150 de 25 países, mas neste labirinto de paredes e espaços de lazer que são instalações artísticas o mural geométrico hiper-colorido de Maya Hayuk é um dos favoritos para background de selfies (ou vídeos: vimos alguns vbloggers, selfie stick a falar para a câmara) e há trabalhos de nomes tão representativos como Lady Aiko, Miss Van ou os Gêmeos.
O sucesso do Wynwood Arts District já se vira contra ele: vemos parques de estacionamento (em altura) em construção e as rendas, que atraíram músicos, escritores, pintores e actores já estão a subir, diz-nos Leo.
O vizinho Design District é radicalmente diferente. Neste, a arquitectura moderna parece ter tido rédea solta ao serviço do luxo. Os prédios não são arranha-céus embora componham um ecléctico skyline. Vê-se que não se poupou na arquitectura que é um dos vértices que levou à criação deste bairro: “a moda inovadora, o design, a arquitectura e as experiências gastronómicas”. O que na prática se vê ao nível do rés-do-chão onde se alinham as mais exclusivas marcas de roupa e joalharia, showrooms de design de interiores e estúdios de design. Há ainda galerias de arte, hotéis e espaços residenciais e os planos são de expansão e incluem museus.
São vários quarteirões, nós ficamo-nos pelos primeiros que desembocam numa praça parcialmente coberta, onde além das lojas não faltam cafés e restaurantes – os sete estrelas Michelin estão espalhados pelo bairro. O emaranhado de ruas é o paraíso para quem tem dinheiro. Bulgari, Tiffany & Co, Saint Laurent, Dior, Valentino, Prada, Givenchy, Louis Vuitton, Gucci, Cartier, Armani, Versace, Lowe (que até tem uma reminiscência portuguesa: um espigueiro, que na verdade são dois, preenche o centro da loja – veio de Portugal porque a marca espanhola não os podia retirar de Espanha) são uns poucos exemplos. Para quem tem menos dinheiro, o bairro é um exemplo “do romance que Miami agora vive com a arquitectura”. “Temos uma série de arquitectos a fazer trabalhos incríveis.” Desde novos museus ao que ela chama “the front porch of Miami”, “o alpendre de Miami”, ou seja, o porto.
Frivolidade e cultura
O porto de Miami, uma ilha, ainda nos parece uma amálgama. Porém, se calhar é porque passamos por ele a alta velocidade. E por água. Se as vias rápidas e pontes que unem Miami a Miami Beach são tentaculares, os braços de água não lhes ficam atrás. Por isso, não faltam ofertas para percorrer as vias aquáticas desta cidade líquida. O Bayside Marketplace, em downtown Miami é o ponto de partida mais comum. Centro comercial e marina, daqui partem os já clássicos passeios de barco. Pode optar-se por um mais calmo ou em alta velocidade. Embarcamos no Thriller e, realmente, emoção não falta.
Partimos ao som de Thriller de Michael Jackson e com piadas cronometradas pelo mestre de cerimónias. A Baía de Biscayne é incontornável e o nosso barco torna-se numa jukebox, ou não fosse aqui que se alinham as mansões à beira água e com ancoradouros privados (com ou sem iates diante) de estrelas da música (muitos vencedores de Grammy latinos) – Ricky Martin, Gloria Estefan, Enrique Iglesias, Jennifer Lopez são alguns dos nomes que retemos e cuja música se vai sucedendo à medida que passamos as casas, na Star Island.
Vemos ainda uma casa que foi de Madonna, “mas os vizinhos, do outro lado da baía, em SoBe, queixavam-se do barulho das festas”, e como se parece “um erro de 34 milhões de dólares” – a referência é para a casa que foi propriedade da estrela da NBA Shaquille O’Neal até ao divórcio. São várias as ilhas aqui nesta zona da baía, algumas artificiais, como as Venetian Islands e a Flager Memorial Island.
Depois da Baía de Biscayne, o barco dirige-se para alto mar, passando entre os arranha-céus de South Pointe (o extremo sul de SoBe), onde está o edifício “sede” da série CSI Miami, e a Fischer Island, onde os condomínios de luxo têm Julia Roberts, por exemplo, entre os proprietários. Agora percorremos as praias de Miami Beach, com a skyline como cenário – percebemos que South Pointe é a melhor zona para fazer praia, se é sossego e areal que se procura, vislumbram-se as icónicas barracas de salva-vidas em cores berrantes e pelos céus passam avionetas trazendo banners promovendo festas ou, exemplo insólito, feiras de armas (“shoot a machine gun”, lê-se). Cruzamo-nos com motas de água e barcos de para-sailing, iates e só nos apetece seguir pelas águas turquesa, com os salpicos no rosto e a sensação de que tudo é possível em Miami.
Afinal, aqui no sul da Florida a reinvenção é uma arte, a ficção e a realidade, os dois lados da mesma moeda. As praias continuam a ser o principal íman, o excesso um modo de vida, mas a frivolidade encontrou o seu contraponto numa insuspeita dinâmica cultural. Esta vai das ruas, já vimos, aos museus, passando pelas centenas de galerias e exibindo-se orgulhosamente também no New World Center, casa, em aço e vidro, da New World Symphony, obra de Frank Gehry, um dos muitos arquitecto de renome mundial que encontram na Grande Miami um dos novos laboratórios arquitectónicos mundiais (até os parques de estacionamento podem ser obras de arte, como o 1111 Lincoln Road, de Herzog & de Meuron).
Porque há vida além da Art Déco – não sabemos é se haveria Miami Beach (ou mesmo Miami) como a vemos hoje sem Art Déco. O futuro encarregou-se de desmentir o director de Miami Beach Resort Hotels Association, que em plena batalha pela conservação do distrito Art Déco disse: “As pessoas que vêm a Miami Beach não vêm ver edifícios velhos. Vêm pela areia e pelo sol. Isto é ‘o golpe Art Déco’”. E foi um golpe de mestre.
Club Med Sandpiper Bay
Um oásis à beira-rio
Se Miami é o verso da Florida, o que vamos encontrar em Port Saint Lucie, duas horas a norte, é o seu reverso. Para trás fica a grande urbe – e as longas filas de trânsito – e diante de nós a small town America. Não que Port Saint Lucie seja propriamente pequena (com quase 180 mil habitantes, ultrapassa, por exemplo Fort Lauderdale).
Porém, não atravessamos o seu centro, apenas um dos típicos subúrbios aparentemente adormecido numa tarde de domingo na pacatez de casas que se alinham com os seus relvados diante e um centro comercial aberto que não é mais do que um edifício térreo de tijoleira vermelha com lojas e cadeias de fast food.
Vamos a caminho do refúgio perfeito depois da cidade de todos os excessos que é Miami, o Club Med Sandpiper Bay. Continuamos na costa oriental da Florida, mas não há areais e águas turquesas à vista: este é um resort (tudo incluído – ou quase, veremos) de rio e até esta mudança pode ser bem-vinda – mais refrescante é, certamente. Embora não sejam muitos os que se aventuram na pequena praia fluvial – “as águas são escuras”, avisam-nos, ainda que só à primeira vista, “por causa de algas” –, numa pequena baía, garantimos que as águas são mais frescas do que as do oceano.
Sim, nadámos no rio, experimentámos stand up paddle pela primeira vez – e não caímos nenhuma vez à água. Jogámos ténis – o que se revelou uma má ideia, apesar de termos escolhido a hora mais tardia possível: a temperatura acima dos 30 graus, a humidade a rondar os 80 por cento e a ausência de calçado adequado foi mistura explosiva – e aproveitámos a piscina “para adultos” (há mais duas abertas a todos), esta mesmo à beira-rio.
É uma das “novidades” dos Club Med, um espaço interdito a crianças e onde os famosos G.O. como todos conhecem os Gentis Organizadores têm a gentileza de não incomodar com constantes apelos à participação nas inúmeras actividades que os Club Med oferecem (há mesmo quadros com os horários das diferentes actividades e, mais moderno, uma aplicação para telemóvel que nos mantém a par de tudo o que se passa).
Fizemos o que pudemos no pouco tempo que tivemos neste pequeno paraíso que é promovido como destino de desporto. Não é por acaso. O golfe (há um campo de 18 buracos), o ténis (inúmeros courts) e o voleibol, por exemplo, têm academias, onde se recebem crianças e jovens de todo o mundo. “Ficam cinco, seis meses”, explica Javier, um dos G.O., “vão à escola e treinam”. Para quem vem de férias, a opção são as clínicas: é só aparecer e treinar (lições privadas são pagas à parte). Mas a oferta desportiva não fica por aqui pois ainda há campos de futebol, basquetebol, mini-golfe e até um trapézio – de manhã reservado às crianças, à tarde aos adultos (e lamentamos não nos termos aventurado). Mas o trunfo são mesmo os desportos náuticos, ou não estivéssemos na margem do rio Saint Lucie, que faz parte de um estuário do mesmo nome e que constitui o ecossistema estuarino com maior biodiversidade do país. Aliás, os avisos que se repetem em placas à beira-rio são eloquentes: além de “nadarmos à nossa responsabilidade”, entre os animais que podemos ver estão os famosos alligators (mas também golfinhos).
Se o paddle, o caiaque e a vela partem da praia, os desportos náuticos motorizados têm um cais de madeira com filas permanentes. É aí que se opta pelos mais comuns jet ski, esqui-aquático, wakeboard ou tubing (um insuflável puxado por um barco a motor) ou pelo flyboard. Deste não vimos nenhum praticante, mas também não estivemos muito tempo a observar – embora se tivéssemos conseguido um lugar numa das camas-cabanas viradas a essa zona talvez a história fosse outra; vimos muito esqui-aquático, desde iniciantes a praticantes experientes.
À noite, as actividades transferem-se para o salão de espectáculos (e aqui lembramo-nos de Dirty Dancing versão século XXI) – organizados pelos G.O., 60 a trabalhar aqui, “até às 17h”: “tudo o que fazemos depois é conviver com os hóspedes e as festas” (e não é trabalho?) – e para o grande bar, que se transforma em discoteca, todos os dias com festas temáticas. Este também é procurado ao final da tarde, com a sua esplanada sob grande alpendre muito concorrida.
Para quem sentir monotonia neste dolce fare niente, há um centro de excursões (pagas à parte), com visitas a Orlando ou Miami ou até aos Everglades. Nós queríamos mais “monotonia”, mais tempo numa espreguiçadeira ou nos grandes sofás da praia a olhar o rio ou a contemplar a noite. Porque mesmo num resort com capacidade para tantos hóspedes – os edifícios compõem uma espécie de labirinto – há espaço para solidão. E, neste entorno, esta não tem preço.
Club Med Sandpiper Bay
4500 S.E Pine Valley StreetPort Saint Lucie
FL 34952
www.clubmed.pt/r/Sandpiper-Bay
A Fugas viajou a convite da TAP e do Club Méditerranée.