Reinaldo Ferreira, um poeta a relembrar

A obra de Reinaldo Ferreira foi breve mas de tal modo forte que levou até a que o comparassem a António Nobre ou a Fernando Pessoa.

Reinaldo Ferreira, co-autor de Uma casa portuguesa (canção de que falámos na crónica anterior) teve duas facetas criativas: a de autor de canções ligeiras destinadas à rádio ou ao teatro de revista em Moçambique, onde vivia e morreu; e a de poeta, de obra breve mas de tal modo forte que levou até a que o comparassem a António Nobre ou a Fernando Pessoa, como o fizeram José Régio (num estudo analítico na primeira edição da sua obra poética), António José Saraiva e Óscar Lopes.

Nascido Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira, em 20 de Março de 1922, em Barcelona (por um acaso devido às andanças do pai, o célebre Repórter X, também Reinaldo Ferreira de seu nome), estudou no Porto e chegou a Moçambique, à então Lourenço Marques (hoje Maputo), com 19 anos, onde concluiu o 7.º ano do liceu. Funcionário público, imergiu na boémia da época. Guilherme de Melo, jornalista e escritor, ali seu contemporâneo e amigo, escreveu que Reinaldo estava já então “perfeitamente integrado no dia-a-dia lourenço-marquino” mas não fora por ele absorvido. “No fundo, é um europeu – pelo nascimento, pela cultura, pela mentalidade. E como tal permanecerá até que a morte chegue.” E chegou cedo, aos 37 anos, em 30 de Junho de 1959. Um cancro no pulmão.

Em vida, os seus poemas foram apenas publicados em jornais e revistas. Logo após a sua morte, amigos reuniram-se para os editar em livro. E assim sucedeu, primeiro em Moçambique, pela Imprensa Nacional, no dia do primeiro aniversário da sua morte, em 1960; e depois em Lisboa, em 1962, pela Portugália, com o referido ensaio de José Régio e introdução e notas de Eugénio Lisboa. Depois delas, o livro Poemas (único e póstumo) de Reinaldo Ferreira só teve uma outra edição, em 1998, com chancela da Vega de Assírio Bacelar, com prefácio (já citado) de Guilherme de Melo.

O livro incluía, na verdade, quatro livros, reunindo poemas publicados, inéditos, inacabados: I, Um Voo Cego a Nada; II, Poemas Infernais; III, Poemas do Natal e da Paixão de Cristo; e IV, Dispersos. E se as canções ligeiras que ali ia escrevendo tiveram expressão pública com ele vivo (além de Uma casa portuguesa, também Kanimambo, Piripiri ou Magaíça), principalmente na voz de João Maria Tudella, cantor e seu amigo, as outras canções a ele ligadas foram compostas, todas elas, a partir do livro Poemas. A mais conhecida é Menina dos Olhos Tristes, que foi gravada por Luís Cília (1965), Adriano Correia de Oliveira (1968), José Afonso (1969), Manuel Freire (1970) e Daniel (1970). Fausto Bordalo Dias gravou Rosie (1977), Amélia Muge gravou Natal (em 1972, numa composição de parceria com a sua irmã Teresa Muge) e João Maria Tudella cantou e gravou, em 1969, Um sossego mais largo, Flor de lapela e Quero um cavalo de várias cores. Esta viria mais tarde a ser também gravada por Frei Hermano da Câmara e António Pedro Braga, entre outros.

Amália, por sua vez, além de Uma casa portuguesa, gravou ainda Medo e Viuvinha, ambos com música de Alain Oulman. Viuvinha, apesar de nos créditos surgir como “popular”, é atribuído a Reinaldo por Vítor Pavão dos Santos (socorrendo-se de fontes “das noites de copos de Lourenço Marques”), no seu livro O Fado da Tua Voz, Amália e os Poetas (Bertrand, 2014). Medo, porém, acarreta uma injustiça. Gravado em 1966 e esquecido nos arquivos da Valentim de Carvalho, quando finalmente é editado em disco (Segredo, 1997), Reinaldo surge como “Reginaldo Faria” ou “Reinaldo Faria”. Já nos projectos Amália Hoje (2009) e Amália, As Vozes do Fado (2015, onde Gisela João o canta), esse prodigioso poema que é Medo surge enfim creditado a Reinaldo Ferreira.

Há ainda Receita para fazer um herói: “Tome-se um homem,/ Feito de nada, como nós,/ E em tamanho natural./ Embeba-se-lhe a carne,/ Lentamente,/ Duma certeza aguda, irracional,/ Intensa como o ódio ou como a fome./ Depois, perto do fim,/ Agite-se um pendão/ E toque-se um clarim.// Serve-se morto.” Mário Viegas gravou-o em disco (1975), dizendo-o; e o grupo punk brasileiro Ira! fez dele uma canção (1988), mas sem o creditar logo ao autor, porque Edgar Scandurra, líder do grupo, então a cumprir o serviço militar, recebeu-o de outro soldado que lhe disse que o escrevera.

Dos tão expressivos e profundos poemas que deixou, Reinaldo Ferreira teve apenas um inscrito a bronze na sua lápide. Definitivo: “Mínimo sou./ Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto”. Ler Reinaldo Ferreira é salvá-lo do esquecimento. Leiam-no.

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