Espelho meu, há alguém mais trumpista do que Trump? Há, e acabou de ganhar no Alabama

Roy Moore ganhou as primárias e vai ser candidato do Partido Republicano ao Senado. Das duas vezes que foi juiz presidente do Supremo do Alabama, foi afastado por defender que o Estado deve prestar obediência a Deus.

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O juiz do Alabama contou com o apoio de Steve Bannon e Sarah Palin Marvin Gentry/Reuters

Dez meses depois da vitória de Donald Trump nas eleições para a Casa Branca, os eleitores mais conservadores do Partido Republicano voltaram a mostrar o dedo médio aos políticos mais tradicionais, numa eleição especial no Alabama realizada terça-feira. Só que desta vez o movimento foi tão forte que enfrentou o próprio Presidente Trump e deixou às portas do Senado um juiz que já foi punido por preferir a palavra de Deus às palavras da Constituição norte-americana.

O palco da maior e mais recente ofensiva dos eleitores ultraconservadores norte-americanos foi o estado do Alabama, e a peça em causa foi uma eleição especial para se encontrar o candidato do Partido Republicano que vai defrontar o representante do Partido Democrata na corrida para o cargo de senador, em Dezembro.

Cada um dos 50 estados norte-americanos elege dois senadores, e as últimas eleições foram em Novembro do ano passado, no mesmo dia em que Donald Trump derrotou Hillary Clinton na corrida à Casa Branca. No caso do Alabama, os dois actuais senadores são do Partido Republicano. Só que um desses dois senadores, Jeff Sessions, foi nomeado pelo Presidente Trump para o cargo de attorney general (o equivalente em Portugal a uma mistura entre o ministro da Justiça e o procurador-geral da República) no início do ano.

Como o lugar de Sessions ficou vago, o estado convocou uma eleição especial, que vai decorrer no próximo dia 12 de Dezembro – para essa corrida, o Partido Democrata já realizou eleições primárias e o escolhido foi Doug Jones, um antigo procurador do Alabama; do lado do Partido Republicano as primárias decorreram terça-feira e o vencedor chama-se Roy Moore, um antigo juiz presidente do Supremo Tribunal do Alabama.

Vencer sem o apoio de Trump

São dois nomes desconhecidos fora dos Estados Unidos (Doug Jones é até desconhecido fora do Alabama), mas que podem muito bem servir de bolas de cristal para quem quiser divertir-se a imaginar o resultado das importantes eleições para o Congresso marcadas para Novembro de 2018 – as eleições que vão manter, reforçar ou retirar a maioria do Partido Republicano no Senado, com tudo o que isso implica para o sucesso ou fracasso da agenda do Presidente Donald Trump.

É verdade que nas últimas semanas Roy Moore levava alguma vantagem nas sondagens sobre o seu principal rival nas primárias do Partido Republicano no Alabama, Luther Strange. Mas também é verdade que Strange foi o homem escolhido pelo governador do Alabama para substituir Jeff Sessions até às eleições de Dezembro (é senador interino) e que foi apoiado pelo Presidente Donald Trump – um apoio que até há bem pouco tempo teria sido usado com orgulho pelos candidatos mais conservadores do Partido Republicano, e que seria quase uma garantia de vitória num ambiente tão instável como o que abriu as portas da Casa Branca ao magnata do imobiliário.

No fundo, tudo indicava que Luther Strange seria suficientemente conservador e anti-establishment para os gostos dos apoiantes de Trump no Alabama. E foi por isso que a liderança do Partido Republicano despejou quase nove milhões de dólares em cima da campanha dele, para travar as ambições do ainda mais instável Roy Moore. De acordo com o plano do Partido Republicano, Strange era um candidato suficientemente rebelde para vencer as primárias e suficientemente disciplinado para derrotar o adversário do Partido Democrata em Dezembro – para garantir que o Partido Republicano manteria dois senadores no Alabama e os mesmos 52 contra 48 que tem actualmente no Senado do país.

Mas, qual cavaleiro de armadura reluzente ao contrário, Roy Moore apareceu em cena e estragou o dia à liderança do Partido Republicano e ao Presidente Donald Trump, que a muito custo tinha sido convencido pelos seus conselheiros a apoiar Luther Strange.

Moore venceu as eleições primárias com 54,6% dos votos, mas a diferença de quase dez pontos a que deixou o candidato apoiado por Trump nem sequer é a notícia principal – o que interessa agora é perceber se a sua vitória na terça-feira pode abalar a estratégia do Partido Republicano para as eleições de Novembro de 2018.

Maioria no Senado em causa

Para começar, é preciso dizer que as eleições para o Congresso, no próximo ano, são muito importantes para o futuro da Administração Trump – se o Partido Republicano tem actualmente a maioria nas duas câmaras do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) e ainda não conseguiu organizar-se para aprovar uma das mais sonantes promessas de campanha (o fim do Obamacare), imagine-se a vida que Trump terá se o Partido Democrata se tornar no partido maioritário no Senado (já que a maioria do Partido Republicano na Câmara dos Representantes está mais segura). Se isso acontecer, Trump bem pode continuar a pedir o que quiser ao Congresso, que dificilmente alguma legislação será aprovada: a Câmara dos Representantes até pode aprovar as propostas, mas a maioria do Partido Democrata no Senado tratará de as bloquear, deixando o Presidente sem nada para assinar em cima da sua secretária.

E é por isso que estas eleições especiais, como a que vai acontecer em Dezembro no Alabama, são muito importantes. Tal como qualquer um dos seus antecessores, o Presidente Trump teve de fazer um raciocínio muito especial sempre que decidiu nomear um senador do Partido Republicano para um cargo importante na sua Administração: de preferência, um senador de um estado que está no saco do Partido Republicano, para que seja facilmente substituído na eleição especial por outro senador do Partido Republicano.

Só que, desta vez, os planos podem sair furados. Com Roy Moore como seu representante na eleição especial de Dezembro contra o candidato do Partido Democrata, o Partido Republicano ganha um representante muito mais trumpista do que o próprio Trump, e perde a capacidade de atrair alguns eleitores do centro-direita do Partido Democrata – algo que Luther Strange poderia fazer com mais facilidade, segundo os cálculos da liderança do Partido Republicano.

No discurso de vitória, Roy Moore começou por dizer que nunca rezou para vencer estas eleições – uma afirmação controversa, vinda de um cristão evangélico tão convicto como ele. Mas a explicação veio logo a seguir: "A melhor decisão que podemos fazer é deixar tudo nas mãos do todo-poderoso. Não há nada que seja grandioso demais para Deus", disse Moore perante os seus apoiantes, numa mistura de discurso político de vitória com sermão de domingo de manhã.

"Deus governa o Estado"

Quem já ouviu falar de Roy Moore não estranhará nem a sua devoção a Deus, nem a total fusão entre política e religião que tem vindo a defender ao longo da vida adulta.

O pensamento político do homem que pode vir a chegar ao Senado norte-americano em Dezembro resume-se a uma condição: a palavra de Deus é a lei e tudo o resto deve submeter-se a ela – seja a Constituição, o Senado, todo o Congresso, o Presidente ou o Supremo Tribunal. Se a palavra de Deus não guiar o governo dos homens, então os homens e as mulheres desse governo são apóstatas – um princípio não muito diferente daquele que prevalece em organizações como o autoproclamado Estado Islâmico, com as devidas diferenças em relação ao uso da violência.

Roy Moore esteve no centro das atenções dos norte-americanos pela primeira vez em 2001, quando foi eleito juiz presidente do Supremo Tribunal do Alabama. Cumprindo uma promessa eleitoral, mandou instalar no tribunal um monumento com uma réplica dos Dez Mandamentos. No mesmo ano, foi levado a tribunal por associações de defesa dos direitos cívicos e obrigado por um juiz do Alabama a retirar o monumento do Supremo Tribunal, por violação da separação entre o Estado e a religião. Ainda como juiz presidente do Supremo, Moore recusou-se a cumprir a ordem do tribunal e disse que "o Deus judaico-cristão governa tanto na igreja como no Estado, e ambos devem prestar obediência a esse Deus". Resultado: o monumento foi mesmo retirado do Supremo Tribunal e Roy Moore foi afastado do cargo por uma comissão de ética.

Depois de duas tentativas falhadas para chegar a governador do Alabama, Moore regressou à presidência do Supremo nas eleições de 2012. Em 2015, quando os Estados Unidos se preparavam para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todos os estados, Roy Moore ordenou aos juízes do Alabama que desrespeitassem as ordens federais e se recusassem a celebrar esses casamentos. Resultado: os casamentos foram mesmo realizados no Alabama e Roy Moore foi suspenso do cargo até ao fim do mandato, em 2019, por violação de seis princípios éticos – em Abril deste ano, Moore anunciou a sua demissão do Supremo e anunciou a candidatura ao Senado.

Mas a vitória de Roy Moore nas primárias do Partido Republicano pode não ter sido apenas um golpe ultraconservador nas credenciais ultraconservadoras de Donald Trump – afinal, o Presidente norte-americano apoiou Luther Strange e o seu ex-conselheiro Steve Bannon, associado à direita nacionalista, apoiou Roy Moore. Tal como a antiga governadora do Alasca, Sarah Palin, e Sebastian Gorka, um antigo assistente de Donald Trump associado ao movimento alt-right.

Se o antigo juiz do Supremo do Alabama vencer as eleições em Dezembro e entrar para o Senado, a sua voz irá juntar-se ao pequeno – mas decisivo – grupo de senadores do Partido Republicano que está a bloquear as propostas da Casa Branca como o fim do Obamacare. Actualmente há entre três e quatro senadores que têm fechado a porta aos esforços dos líderes republicanos para unirem o partido no Senado: de um lado, os mais moderados John McCain e Susan Collins, e em algumas ocasiões Lisa Murkowski; do outro lado, o libertário Rand Paul. Se entrar no Senado, Roy Moore já prometeu que votará contra qualquer proposta que não elimine por completo o Obamacare, tornando ainda mais complicada a tarefa do Partido Republicano (e de Donald Trump) para agradar a todas as correntes e começar, finalmente, a cumprir as grandes promessas da campanha.

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