Quando a arquitectura joga em casa

Um arquitecto visita a faculdade de arquitectura que desenhou - Manuel Aires Mateus sentiu-se em casa em Tournai, na Bélgica, ao passear pelo novo edifício, já habitado, explicando o projecto. É a arquitectura em curso.

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Escadaria dupla em caracol é já um ícone do novo edifício Tim van de Velde
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Escada e clarabóia Tim van de Velde
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Maqueta original da escada Atelier Aires Mateus
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Entrada principal da faculdade Tim van de Velde
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Manuel Aires Mateus (à dir.) com o anterior director da faculdade, Olivier Laloux Casa da Arquitectura
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Manuel Aires Mateus com o anterior director da faculdade, Olivier Laloux,Manuel Aires Mateus com o anterior director da faculdade, Olivier Laloux Casa da Arquitectura,Casa da Arquitectura
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Manuel Aires Mateus Casa da Arquitectura
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Manuel Aires Mateus apresentado por Marc Dubois Casa da Arquitectura
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Manuel Aires Mateus a apresentar o projecto Casa da Arquitectura
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Novo auditório da faculdade Casa da Arquitectura
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Manuel Aires Mateus Casa da Arquitectura
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Visita guiada pelo arquitecto à nova faculdade Casa da Arquitectura
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A nova escada Tim van de Velde
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Sala no novo edifício Tim van de Velde
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Corredor interior Tim van de Velde
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Entrada traseira da escola Tim van de Velde
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Localização do projecto dos Aires Mateus no velho quarteirão de Tounai Atelier Aires Mateus
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Escavação do sítio de implantação do novo edifício Atelier Aires Mateus

Os alunos da Faculdade de Arquitectura de Tournai, na Bélgica, tiveram esta quinta-feira, no final da primeira semana do novo ano lectivo, a oportunidade de viverem uma experiência pouco habitual: assistiram à visita de um dos arquitectos que projectaram a sua nova casa, Manuel Aires Mateus, que com o seu irmão Francisco venceu em 2014 o concurso internacional para a construção das novas instalações deste departamento da Universidade Católica de Lovaina (UCL).

Entre esses alunos estava a francesa Camille, que, vinda da Picardia, uma região do seu país muito próxima da Valónia belga, é uma dos 500 alunos (mais de 80% franceses) que este ano frequentam os cursos de Arquitectura, Engenharia Arquitectónica e Urbanismo daquela instituição.

Camille, aluna do 5.º ano, integrou o pequeno grupo que, ao princípio da tarde, acompanhou a visita guiada por Manuel Aires Mateus às novas instalações da faculdade, numa iniciativa promovida pela Casa da Arquitectura, de Matosinhos. No final, admitiu ao PÚBLICO que não tinha ainda feito totalmente o luto do abandono da velha escola nos arredores de Tournai, num edifício antigo que fora uma capela e também um teatro. Mas, por outro lado, mostrou-se já rendida ao “diálogo” que o projecto dos Aires Mateus conseguiu estabelecer com os velhos edifícios que fazem o quarteirão na zona leste daquela cidade de raiz medieval, situada a escassa meia dúzia de quilómetros da fronteira com a França.

Ao fim da tarde, terminada a conferência de Manuel Aires Mateus, que mobilizou perto de duas centenas de estudantes que praticamente lotaram o novo auditório da faculdade, o PÚBLICO encontrou uma estudante portuguesa ainda em estado de encantamento com o lugar e com a experiência que estava a viver nesta sua primeira semana de Erasmus. “Escolhi vir para aqui porque ainda tenho as ideias muito baralhadas, e vi no Erasmus a oportunidade de encontrar orientação para a minha vida”, confessava Inês Soares, 22 anos, natural de Vale de Cambra e estudante do 5.º ano da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP).

Falando sobre o novo edifício em Tournai e a sua fachada “incrível”, elogia “a forma como o arquitecto conseguiu jogar o novo com o pré-existente” e concentra as suas atenções no fórum, o espaço “inventado” pelos Aires Mateus para dar sentido, e eficácia, às novas instalações: “O fórum é o lugar em que toda a gente se encontra, alunos e professores, e é um espaço onde nos sentimos bem”, diz Inês, que não teve ainda tempo para encontrar qualquer defeito na nova escola.

Como uma coluna vertebral

O fórum é, na verdade, a “coluna vertebral” – a expressão é de Marc Dubois, o arquitecto e crítico belga que fez a apresentação de Manuel Aires Mateus na conferência – que liga e dá coerência ao novo equipamento, clarificando a sua inscrição urbana.

Atravessando o velho quarteirão, entre uma fachada alta e ampla que dá directamente para um jardim interior e, no lado oposto, uma pequena porta replicada daquela, que permite um segundo acesso à escola, a obra do atelier português entrelaça e cose os espaços conquistados aos edifícios pré-existentes: um convento-hospital do século XVII e duas fábricas do século XIX. Fá-lo numa linguagem assumidamente contemporânea, paredes e superfícies cinzentas em capoto (um composto de rede e argamassa, que assegura também o isolamento térmico), e janelas-vitrinas amplas em algumas secções do edifício a criar jogos de luz e sombra, e a “dialogar” – e este verbo foi por diversas vezes conjugado por Manuel Aires Mateus nas suas intervenções – com o tijolo belga de cor vermelha, vetusto.

“O nosso desenho foi sobretudo pensado para construir espaço e novos circuitos, para responder às necessidades da escola, mas respeitando sempre a relação com o lugar”, explicou o arquitecto no encontro com estudantes e professores. Realçou, de resto, que isso significou ser simultaneamente “respeitoso e brutal com o edifício de tijolo”: “O tijolo é a minha percepção da Bélgica. Ele tem um efeito sobre os novos materiais e é isso que permite fazer essa abstracção - incorporámos o tijolo no nosso projecto sem o utilizar.” E foi nesse jogo entre texturas, estéticas e tempos diversos que os Aires Mateus decidiram apostar nesta que foi a primeira Faculdade de Arquitectura que desenharam.

Nesse sentido, jogaram em casa. Na abertura da conferência, Manuel começou por falar precisamente do “prazer e privilégio” de trabalhar para clientes da mesma área. Explicou, depois, que o projecto da nova escola respondeu a condicionantes muito precisas, sendo a principal um orçamento muito estrito, limitado a 4,1 milhões de euros – “um custo baixíssimo para fazer uma faculdade, mesmo em Portugal”, realçaria mais tarde ao PÚBLICO. “Isso obrigou-nos a uma gestão muito directa da obra" e fez com que o próprio processo se tornasse “muito rico”.

Daí o recurso a materiais pobres – a utilização do tijolo estava fora de questão, devido aos custos. “Decidimos que iríamos usar a riqueza dos materiais dos edifícios pré-existentes para valorizar a maneira como construímos o novo edifício”, acrecenta o arquitecto português.

Unanimidade no concurso

Em 2014, o atelier dos Aires Mateus venceu o concurso para a Faculdade de Arquitectura de Tournai-UCL “por unanimidade”, recorda o professor e arquitecto Olivier Laloux, que, à época, dirigia a instituição. “A forma como o Manuel nos apresentou o projecto e explicou a sua leitura da cidade, apostando numa faculdade aberta para o quarteirão, convenceu o júri”, diz o ex-director. “Nós queríamos uma escola aberta, que as pessoas pudessem atravessar, e onde pudessem circular e comunicar com os alunos”, explica Laloux, lembrando que o atelier português foi um dos 15 participantes iniciais no concurso.

Por diversas vezes, durante a jornada de quinta-feira, Manuel Aires Mateus enunciou a sua visão da arquitectura como “uma arte incompleta”, que só se conclui com a utilização. E como a última vez que tinha visitado a obra fora no Natal do ano passado, ainda antes da transferência dos alunos da velha escola, que se verificaria em Fevereiro, teve agora a satisfação de ver como os estudantes se apropriaram do edifício e dos seus lugares.

É claro que há ainda disfunções. As paredes do fórum-galeria não permitem dependurar os quadros, por exemplo; e a acústica das grandes salas-atelier – instaladas nos corpos dos edifícios pré-existentes e que, de resto, explica Olivier Laloux, não foram tratadas pelos Aires Mateus – apresenta problemas. Mas “há uma monitorização do edifício através do tempo que irá sendo acertada”, assegura o arquitecto português.

No desenho da nova Faculdade de Arquitectura de Tournai, além do fórum, que domina e prende todas as atenções, há dois outros “gestos” com que os Aires Mateus assinaram o edifício: a fachada (e a porta das traseiras) em forma triangular a replicar o ícone de uma casa – a escola como casa, que se prolonga depois no interior com um auditório que é também uma casa dentro da casa –; e principalmente a escada dupla, a que Marc Dubois estende também a associação à “coluna vertebral”. Trata-se de um inventivo desenho em caracol com dois percursos desencontrados – e que os arquitectos tiveram de defender ferreamente perante as exigências dos bombeiros, que queriam uma escada mais larga e convencional. “A escada é praticamente a única coisa que foi feita como tinha sido imaginada inicialmente; tudo o resto foi adaptado para responder ao programa e às necessidades do cliente”, explica Manuel Aires Mateus.

Marc Dubois vê esta escada como “uma escultura no espaço”, que se completa com uma pequena clarabóia em forma de “gota de água”. O crítico e historiador belga da arquitectura vê também aqui uma emanação da “sensibilidade” que marca a obra dos seus autores. “Não se trata de uma arquitectura pós-moderna que quer mostrar o gesto, antes marca a sua presença ao mesmo tempo que quase se anula, respeitando sempre o edificado”, diz Dubois, que vem acompanhado o percurso da arquitectura portuguesa desde que, em 1983, apresentou uma exposição de Álvaro Siza no Museu de Artes Decorativas de Gent, na Bélgica.

No final da conferência na casa da arquitectura de Tournai, um estudante quis saber que conselhos tinha Manuel Aires Mateus para dar aos jovens aspirantes à profissão. E ele respondeu: “É preciso saber lidar com o tempo — a arquitectura é um trabalho de resistência, onde é preciso negociar, sempre, mas nunca fazer concessões. É uma bela profissão, se se conquistar a liberdade. E é preciso não ter medo.”

E quem não teve medo foi a jovem Inês Soares: no final, abeirou-se de Manuel Aires Mateus a perguntar-lhe se ele poderia registar o seu nome como candidata a trabalhar no seu atelier em Lisboa, quando acabasse o Erasmus e o curso na FAUP. E saiu feliz pela porta da frente.

Notícia corrigida: o número de alunos da Faculdade de Arquitectura de Tournai é 500 e não 50.

O PÚBLICO viajou a convite da Casa da Arquitectura

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