Explicando de novo e devagarinho
Não existe, pelo menos de forma relevante no debate europeu, quem defenda que a solução é pisar sempre no acelerador, como na caricatura que a direita portuguesa tenta apresentar da esquerda.
Com a saída do “lixo” a que Portugal estava consignado pela Standard & Poor’s, muitos comentadores regressaram ao lugar-comum de que a posição de política económica da esquerda portuguesa e europeia é a de gastar sempre mais dinheiro público, em todas as situações orçamentais e contextos económicos. Compreende-se por que o fazem: isso permite-lhes também dizer que sempre que a esquerda poupa ela estaria na verdade a implementar políticas de direita. Qualquer sucesso da esquerda na sua política económica, com o crescimento económico acompanhado de uma consolidação orçamental, seria assim sempre na verdade um sucesso de uma política de direita.
Mas este é um raciocínio errado. Concentremo-nos em dois elementos essenciais no erro: ignorância sobre os verdadeiros fundamentos do debate económico na recente crise europeia e inversão da ordem dos fatores entre crescimento económico e consolidação orçamental.
A crise financeira de 2008 e a crise do euro de 2010-11 provocaram a reedição de um debate económico que vinha da Grande Depressão. Em 1930, esse debate opôs keynesianos a “liquidacionistas”; na crise do euro, o debate opôs keynesianos a “austeritários” (ou, para ser mais rigoroso, keynesianos a ordoliberais). Mas, afinal, que defendem uns e outros?
Na esteira do grande economista britânico John Maynard Keynes, os keynesianos defendem que, numa recessão, é necessário que os poderes públicos (nacionais ou supranacionais) gastem mais dinheiro para estimular a economia. No ordoliberalismo, escola económica de origem alemã e sobretudo preocupada com a possibilidade de aumento da inflação, o fundamental é que os governos preservem a todo o momento uma posição orçamental sólida.
Só que falta contar metade da história. Os keynesianos não desvalorizam a necessidade de o estado poupar dinheiro, nem são contra a disciplina orçamental. Ao contrário do que alguns dos seus adversários políticos pretendem fazer passar, um keynesiano não é da opinião de que “os défices não têm importância”. Aquilo que faz a distinção entre um keynesiano e um ordoliberal tem a ver com o momento em que se torna importante diminuir o défice. Para um ordoliberal, o momento é sempre. Foi por isso que tivemos austeridade em plena recessão, arriscando uma depressão. Para o keynesiano, o momento ideal para diminuir o défice é quando há crescimento económico, o que permite aos poderes públicos aproveitarem a ajuda de uma maior recolha de impostos e precaverem-se com fundos para uma recessão futura.
Essa é a posição da maior parte dos economistas que apoiam a política atual em Portugal e as políticas de Mario Draghi no Banco Central Europeu. Mesmo as diferenças entre o Plano de Estabilidade de Mário Centeno e da variante a esse plano que o PÚBLICO analisou ontem (por Paulo Trigo Pereira, Ricardo Cabral e outros) são apenas diferenças dentro de uma visão keynesiana: o ministro das Finanças quer um défice próximo do zero em 2019, os autores do plano alternativo querem défice zero em 2021. Uma vez que para o keynesianismo é essencial, como na condução de um automóvel, saber em que momento se levanta o pé do acelerador e se passa para o travão, é natural que a discussão entre keynesianos se faça sobre o momento da transição e a forma da transição. Mas essa é, de qualquer forma, uma discussão entre keynesianos. Os ordoliberais, prevalentes na direita europeia e tornados austeritários durante a crise, corresponderiam àquele tipo de pessoas que vai sempre à mesma velocidade em qualquer tipo de estrada. Mas não existe, pelo menos de forma relevante no debate europeu, quem defenda que a solução é pisar sempre no acelerador, como na caricatura que a direita portuguesa tenta apresentar da esquerda.
Em resumo: as políticas da esquerda são, imagine-se a surpresa, políticas de esquerda. O défice pode agora ser controlado porque há crescimento económico: é o crescimento que ajuda a cortar no défice e não o contrário. E não, keynesianismo não é achar que se deva gastar sempre mais dinheiro público.