A dívida soberana: o que aconteceria à Catalunha independente?
Uma declaração de independência unilateral da Catalunha, sem um acordo com o Estado espanhol, trará complexos problemas jurídico-políticos.
1. A Catalunha é uma das regiões mais ricas de Espanha, com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita cerca 10% acima da média europeia em 2015. As estatísticas do Eurostat têm mostrado uma riqueza superior à grande maioria regiões espanholas. Todavia, também não é a mais elevada de Espanha, sendo superada pela Comunidade de Madrid, pelo País Basco e pela Comunidade Foral de Navarra. Em qualquer caso, importa não perder de vista que vivemos num mundo globalizado e de interdependências. A riqueza da Catalunha depende, e muito, do acesso ao resto do mercado espanhol, da União Europeia e do resto do mundo. É ilusório pensar-se que uma independência unilateral, sem um acordo abrangente, não traria importantes consequências negativas para a sua economia e emprego. Naturalmente que ocorreriam também consequências muito negativas para Espanha, desde logo pela quebra do seu PIB em perto de 20%. Não há aqui nenhum cenário realista de emergir um oásis de prosperidade, de uma Catalunha unilateralmente independente se tornar uma espécie de Suécia do Mediterrâneo. Vejamos melhor as razões.
2. Entre os múltiplos e complexos problemas que uma secessão de Espanha levantaria, está o da dívida soberana, numa linguagem económica, ou seja, da dívida do Estado (dívida pública), numa terminologia mais jurídica. Ficaria a dívida só como encargo da Espanha? Seria repartida entre a Espanha e a Catalunha? Neste último caso, qual seria o critério usado para a repartição? À semelhança do que fiz anteriormente (ver “É possível uma Catalunha independente na União Europeia?” in Público 12/09/2017), vou também aqui analisar a questão de um ponto de vista jurídico-político. Em certos aspectos, este caso faz lembrar o problema levantado pela saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit). O valor em dívida da contribuição britânica para o orçamento da União Europeia — especialmente a forma concreta como será calculado e o período temporal que deverá abranger —, é um dos pontos tecnicamente mais complexos das negociações. É também um dos que mais alimenta um contencioso jurídico-político. Todavia, existe uma diferença entre estas duas situações, em termos de legislação aplicável. No caso do Brexit, o quadro jurídico das negociações é, por princípio, o do Direito da União Europeia. Já para o caso de uma possível independência da Catalunha, a questão terá de ser resolvida no quadro do Direito Internacional geral e/ou convencional. Note-se, contudo, que, mesmo caso do Brexit, se não houver acordo nos termos do artigo 50.º do Tratado da União Europeia, o Direito Internacional é relevante pois o problema transitará para esse quadro jurídico.
3. Para casos como o da Catalunha, existe, teoricamente, um instrumento legal internacional — a Convenção de Viena sobre Sucessão de Estados em matéria de Propriedade do Estado, Arquivos e Dívidas (1983). Este permitiria solucionar o problema da dívida entre as duas partes. Todavia, a Convenção sobre Sucessão de Estados em matéria de Propriedade do Estado, Arquivos e Dívidas, levanta vários problemas. O primeiro é que, apesar do tempo decorrido, não foi ratificada pelo número mínimo de Estados (quinze), previsto no seu artigo 50 n.º 1, pelo que não entrou em vigor. O segundo problema decorre do artigo 3.º, que estabelece assim o seu âmbito de aplicação: “A presente Convenção aplica-se apenas aos efeitos de uma sucessão de Estados que ocorrem em conformidade com o Direito Internacional e, em particular, com os princípios do Direito Internacional incorporados na Carta das Nações Unidas”. Ora, não parece haver conformidade com a legalidade internacional na independência unilateral da Catalunha (excepto se formos para a tese minoritária do colonialismo e/ou da opressão, que justificaria a invocação do princípio da autodeterminação dos povos.)
4. Apesar dos problemas apontados à Convenção, esta pode, ainda assim, ser usada para uma discussão da questão da dívida soberana. Tem, pelo menos, a virtude de nos ajudar a perceber as potenciais implicações jurídico-políticas de uma independência da Catalunha sobre a dívida, bem como as suas possíveis soluções. No seu artigo 33.º a Convenção define dívida de um Estado da seguinte forma: “toda obrigação financeira de um Estado predecessor para com outro Estado, para com uma organização internacional ou para com qualquer outro sujeito Direito Internacional, nascida de conformidade com o Direito Internacional”. É o caso que analisamos aqui. Com reflexos directos na solução do problema está no artigo 37, nº 1 (com a epígrafe: “Transferência de parte de um território de um Estado”), o que ocorrerá entre a Espanha e a Catalunha, numa situação de independência desta última. Este artigo determina o seguinte: “Quando parte do território de um Estado for transferido para outro Estado, a passagem do débito estadual do Estado predecessor para o Estado sucessor é regulada por acordo.” Acrescenta, em seguida, o n.º 2 do mesmo artigo: “Na falta de um acordo, o débito estadual do Estado predecessor deverá passar para o Estado sucessor numa proporção equitativa, tendo em conta, em particular, a propriedade, direitos e interesses que passam para o Estado sucessor, em relação ao débito estadual.” Quer dizer, dada a delicadeza do assunto, a Convenção começa por estabelecer o princípio da regulação por negociação e acordo entre as partes, antes de avançar com critérios de solução.
5. O problema maior surge quando a solução por acordo não é possível, o que parece ser o caso pelas posições antagónicas de Espanha e da Catalunha. Existindo falta de acordo, o critério aplicável será o artigo 37 n.º 2, o qual aponta para uma divisão da dívida segundo uma “proporção equitativa”. Mas, como nada mais é dito, várias formas concretas poderiam ser usadas para repartir a dívida soberana. A Catalunha representa cerca de 16% da população total do Estado espanhol, de 19% do seu Produto Interno Bruto (PIB) e de 26% das suas exportações (em grande parte feitas por empresas multinacionais, que se poderão deslocalizar, caso antecipem perdas). Em princípio, o mais natural seria dividir a dívida em função do PIB, o que levaria a Catalunha a ter de ficar com perto de 1/5 da dívida do Estado predecessor, ou seja do Estado espanhol. Mas aqui pode surgir logo um contencioso. Porque não usar antes a população como critério para a repartição? (A percentagem seria mais favorável à Catalunha.) Outro problema: seria toda a dívida pública do Estado espanhol a ser dividida? Ou seria apenas a dívida não territorializável e não contraída no benefício de certas instituições ou empresas públicas específicas a ser repartida? Em qualquer caso, a Catalunha teria sempre de suportar a dívida relativa aos empréstimos contraídos pela Generalitat, o governo da comunidade autónoma, municípios e outras entidades públicas catalãs.
6. Mesmo admitindo um entendimento entre o Estado espanhol e a Catalunha para resolver o problema da dívida com base na Convenção de Viena de 1983, poderão surgir posturas negociais extremadas. A ocorrer, será algo que faz lembrar as negociações do Brexit, entre o Reino Unido e a União Europeia, já em curso. Um conflito deste tipo pode surgir por diversos motivos. O facto de o artigo 37.º estabelecer apenas princípios gerais, os quais deixam, como vimos, uma ampla margem para discussões em situações concretas de repartição da dívida, abre espaço para posições antagónicas. Mas há mais motivos. O artigo 38.º da referida Convenção (com a epígrafe “Estado recém-independente”), no caso de ser aplicável, seria mais favorável à Catalunha. Em termos gerais, estabelece que os Estados sucessores recém-criados não ficam responsáveis pelas dívidas do Estado predecessor, a menos que tenham celebrado acordo nesse sentido. Quanto ao n.º 2, acrescenta ainda que “não poderá infringir o princípio da soberania permanente de cada povo sobre suas riquezas e os seus recursos naturais, nem o seu cumprimento poderá colocar em perigo os equilíbrios económicos fundamentais do Estado recém-independente.” Pode discutir-se em que medida seria aplicável neste caso, em vez do já referido artigo 37º. Provavelmente, esta é também uma das razões pelas quais a Convenção, apesar de datar de 1983, apenas foi ratificada até agora por um escasso número de Estados. (Quase todos eles, num passado recente, emergiram como independentes a partir de Estados anteriores. Encontram aí argumentos favoráveis para afastar dívidas de Estados predecessores.)
7. Com reflexos importantes no problema da dívida está ainda a saída da Catalunha da Zona Euro, no caso de o processo de independência não ser acordado com a Espanha. Trata-se de uma consequência inevitável de não poder permanecer na União Europeia. Só o Estado espanhol permaneceria membro da União. O território do novo Estado ficaria fora até uma hipotética nova adesão. Uma República da Catalunha independente teria, assim, de enfrentar também um problema monetário. Grosso modo, teria duas possibilidades: ou criar uma moeda própria, ou continuar a usar o euro, mas como um Estado estrangeiro. O Banco Central Europeu (BCE) não se tem oposto ao seu uso internacional por Estados não membros da União. O principal problema seria outro. Como entidade política exterior à União Europeia e à Zona Euro, a Catalunha e as suas instituições financeiras não poderiam recorrer aos instrumentos de liquidez e a programas de financiamento do BCE. A alternativa seria recorrer aos mercados internacionais de acordo com as condições de empréstimos destes, tudo indica em condições mais desfavoráveis. No caso de optar por criar uma moeda própria, a situação também levantaria problemas. Provavelmente enfrentaria uma desvalorização face ao euro, o que teria reflexos no agravamento da sua dívida e na inflação. Provocaria perda de valor nos activos de particulares e empresas no seu território, para além de outras questões jurídicas sempre potencialmente litigiosas.
8. Não é possível antecipar plenamente o que aconteceria em termos de dívida soberana, ou seja, dívida do Estado, no caso de uma independência unilateral da Catalunha. Há demasiadas incertezas jurídicas, e também políticas, sobre a forma como o problema poderia ser resolvido. Uma coisa, no entanto, parece certa: é um assunto inquestionavelmente importante pelas suas implicações na economia e bem-estar. Uma declaração de independência unilateral da Catalunha, sem um acordo com o Estado espanhol, nesta e noutras áreas, trará complexos problemas jurídico-políticos. Para além disso, pode dissipar parte significativa da prosperidade da Catalunha, se esta ficar enredada num contencioso jurídico-político de longo prazo com a Espanha e afastada da União Europeia e da Zona Euro. Nesse cenário, arrisca-se, ainda, a afastar as empresas e os investidores internacionais e a degradar a capacidade de obter crédito internacional em condições favoráveis. Naturalmente que o Estado espanhol também não ficaria imune a esses efeitos negativos, desde logo pela quebra no PIB e nas exportações. Teria muito a perder. Mas isso não resolve o problema da Catalunha e defraudaria a expectativa de independência associada a mais bem-estar de muitos dos seus cidadãos.