Guterres pede “sentido de Estado”, Trump ameaça com a guerra
O secretário-geral da ONU e o Presidente dos EUA têm uma única ponte de diálogo: a ONU tem de ser mais eficaz. Em tudo o resto, há um deserto. O pensamento de Trump é a exacta negação de tudo o que a ONU representa. O pano caiu de uma vez por todas.
O contraste não podia ter sido mais flagrante. O secretário-geral da ONU, António Guterres abriu a 72ª Assembleia Geral da organização a pedir “homens de Estado” que consigam “evitar a guerra” e, minutos depois, o Presidente americano Donald Trump disse estar disposto a “destruir completamente a Coreia do Norte”.
A estreia dos dois líderes no “parlamento do mundo” teve a grande vantagem de tornar tudo (ainda) mais claro e expor, no principal palco do multilateralismo e da cooperação internacional, o quanto o pensamento de Trump é a exacta negação de tudo o que as Nações Unidas representam.
Trump fez tábua rasa da “diplomacia para a paz” (particularmente cara a Guterres) e deixou cair o pano de uma vez por todas. Quem tinha esperança de que a solenidade do acto ou o peso da história dessem ao Presidente republicano algum sentido de estado ficou esclarecido. Como notou a senadora democrata Diana Feinstein, Trump “usou o palco da paz para ameaçar com a guerra”. Há uma nota agravante a acrescentar: não se tratou de um tweet escrito no sofá num sábado à noite, nem de uma blague de campanha. Este foi um discurso pensado, escrito e reescrito, e lido pelo círculo mais próximo do Presidente, a começar por Nikky Haley, sua embaixadora na ONU. Trump ameaçou a Coreia e cortou com o Irão, mas o pano caiu sob a forma de uma frase: "Não vamos continuar a permitir que se aproveitem dos Estados Unidos e entrar em negócios que só interessam a uma parte sem termos nada em troca." Como se não bastasse, apelou a um "patriotismo" na linha do salve-se quem puder e pediu aos 193 Estados-membros que apliquem o slogan "America First" a cada um dos seus países, num extraordinário hino ao unilateralismo.
De Guterres, ficam duas frases. A primeira é óbvia: “Este é o momento dos homens de Estado. Não podemos caminhar para a guerra como se fossemos sonâmbulos.” A segunda, mais subtil, é um lamento-denúncia: "Tenho de ser franco: em demasiados casos, as duas partes acreditam que a guerra é a resposta."
Todo o discurso do secretário-geral da ONU pode no entanto ser lido a pensar em Trump. Desde o aviso de que a “retórica incendiária pode levar a mal-entendidos fatais" ao destaque que deu à comissão de mediação que acabou de criar e onde pensa colocar a Líbia como primeira prioridade, passando pelas sete ameaças actuais que identificou. A saber: a ameaça nuclear ("desde a Guerra Fria que as ansiedades globais não eram tão elevadas — o medo não é uma abstracção"); o terrorismo ("temos de fazer mais nas raízes da radicalização" e "as abordagens de mão pesada são contraproducentes"); as alterações climáticas ("hoje sabemos que as economias podem crescer ao mesmo tempo que as emissões de carbono baixam — a liderança tem de apanhar o comboio"); a desigualdade e globalização injusta ("não nos falta dinheiro, o que nos falta é sabedoria"); o lado negro da inovação e da tecnologia (falou da dark web, de inteligência artificial e das novas questões éticas geradas pela engenharia artificial) e da mobilidade ("sofremos uma crise de solidariedade" — "Eu próprio sou um migrante, mas ninguém esperaria que eu tivesse arriscado a vida num barco ou a atravessar o deserto num camião para procurar trabalho fora do meu país. A migração segura não pode estar limitada à elite global"). No fim, apresentou-se como um secretário-geral reformista de mangas arregaçadas, que em nove meses já pôs em marcha reformas de peso. Conclusão: Guterres e Trump têm uma única ponte de diálogo. A ONU tem de ser mais eficaz.
"Para que serve a ONU?", perguntaram vários líderes. Emmanuel Macron deu a melhor resposta do dia: "Há quem acredite que o multilateralismo é um desporto confortável, um jogo de diplomatas. É falso. Deixamo-nos acreditar que não somos tão fortes no multilateralismo. É falso. O multilateralismo não é um refúgio para pessoas inteligentes. É o que permite construir a paz."
Resta-nos a consolação de ver que Trump esperava aplausos que não recebeu. Vale a pena ver o vídeo completo e procurar o momento em que pára à espera, em vão, de cheerleaders.