Um discurso de Costa com os pés assentes na terra e uma ponte para Berlim
António Costa apresentou no Colégio de Bruges as prioridades portuguesas para o futuro da Europa. O debate apenas espera pelas eleições alemãs. Estendeu a mão à chanceler Angela Merkel sem renunciar a algumas das "ideias revolucionárias" de Macron.
Simone Veil e Mário Soares foram o ponto de partida para o discurso de António Costa sobre o futuro da Europa, feito a uma hora de Bruxelas, na velhíssima e riquíssima cidade onde a História europeia está inscrita em cada pedra. O primeiro-ministro português inaugurou o ano lectivo do Colégio de Bruges. Disse que 2018 será um ano crucial em que a Europa ou consegue reformar-se ou arrisca uma estagnação incompatível com o mundo de hoje.
Falou em Simone Veil, porque é a patrona do curso europeu que Costa inaugurou esta sexta-feira, seguindo uma velha tradição. Morreu recentemente levando no pulso os números que nunca apagou da sua passagem por Auschwitz e foi a primeira presidente do primeiro Parlamento Europeu escolhido por eleição directa. Mário Soares pelo seu eterno combate pela liberdade e pelo regresso de Portugal à Europa dos valores universais.
António Guterres esteve em Bruges em 1997 com a mesma missão. Foi aqui que Margareth Thatcher fez o seu grande discurso sobre a Europa, que nunca quis abandonar. Numa altura em que a saída do Reino Unido, como referiu Costa, é um golpe duro no projecto europeu que deve ser atenuado com uma relação que seja o mais próxima possível.
"O Reino Unido será sempre para nós um parceiro indispensável, a nível nacional e europeu", disse.
A primeira parte do discurso foi dedicada aos valores em que assente a integração europeia duramente afectados por dez anos de crise mas sem os quais a Europa não sobreviverá. A reconstrução tem que começar por aí, "pelos valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, sem cedências à demagogia ou ao relativismo cultural".
Geometria variável
Depois Costa falou nas prioridades para voltar a erguê-la, com os pés bem assentes na terra. Num mundo em turbilhão que a desafia quotidianamente, só unidos, pequenos e grandes, Leste e Oeste, Norte e Sul, pode a UE enfrentar os seus maiores desafios: as alterações climáticas, a globalização que desafia o seu modelo social, as migrações que alteram os equilíbrios das suas sociedades, a instabilidade da sua vizinhan,ça que é um risco para a paz, ou o terrorismo que espalha o medo nas suas cidades.
O caminho tem de ser feito caminhando. Sem pretender grandes mudanças institucionais (o Tratado de Lisboa chega para o que há a fazer). Sem fixar novos objectivos antes de concluir os actuais. Uma forma simpática de responder a Jean-Claude Juncker e ao seu vasto programa para relançar a Europa, anunciado no discurso do estado da União na quarta-feira.
A heterogeneidade recomenda que se avança a diferentes ritmos. “É mais difícil hoje coincidirmos todos na mesma vontade comum”, disse Costa. “Devemos admitir que como acontece no euro e em Schengen, que a Europa progrida em geometria variável”, desde que seja aberta e com critérios. É a tese de Macron bem vista em Berlim. Ou seja, não é possível nem desejável que todos entrem na União Económica e Monetária (UEM) ou em Schengen. Depois a ambição. Não vale a pena lançar novos desafios “sem consolidar os que já temos”, ou seja, a reforma da UEM é a prioridades das prioridades para corrigir os défices estruturais da zona euro que a crise tornou evidentes.
Costa mostrou-se optimista. Os sinais até agora dados pela Comissão Europeia, pela chanceler alemã e pelo Presidente francês indicam que “terminou o estado de negação” e que a UEM não ficará à espera da próxima crise. O primeiro-ministro português segue as principais ideias que já estão em cima da mesa, desde a conclusão da União Bancária a um verdadeiro Fundo Monetário Europeu, embora não refira o ministro da Economia e das Finanças para coordenar as politicas económicas (há dois modelos, sendo um deles que essa nova figura seja um vice-presidente da Comissão, segundo o que acontece com a alta representante Federica Mogherini).
O que se segue é uma clara aproximação às preocupações da chanceler. Convém abrir um parêntesis para lembrar que o primeiro-ministro português criou uma relação de confiança com Angela Merkel, em parte fruto do acaso. Ditam as regras que fiquem lado a lado no Conselho Europeu, o que tem permitido longas e frutuosas conversas. Costa confia nela. Ela percebeu que Portugal é um parceiro fiável, para além da agradável surpresa do défice e do crescimento da economia.
Costa entende que a solidez do euro só será alcançada com a convergência económica e social. A questão chave passa pelos investimentos que contribuam para esta convergência. Um orçamento próprio da zona euro, que defende, não é para “transferências”, a palavra que Berlim odeia, para financiar as ineficiências nacionais, mas para alcançar mudanças estruturais. Recupera uma ideia já defendida pela chanceler: contratos de investimento para levar a cabo reformas específicas, devidamente quantificadas e calendarizadas, que condicionam o financiamento. António Costa voltou a sublinhar que sem convergência real da economia a zona euro nunca será estável. Outra novidade importante. António Costa olha com realismo para o próximo quadro financeiro pós-2020, levando em conta o que mudou na Europa, com a crise, e o que falta mudar– o impacte do "Brexit", as novas prioridades na Defesa, Segurança, as migrações. Mas também avisa que o orçamento comunitário não se pode esgotar nos meros 1% do PNB que tem hoje.
Costa acredita que 2018 será um ano crucial em que a Europa ou consegue reformar-se ou arrisca uma estagnação incompatível com o mundo de hoje. Acredita que Juncker, mau grado o seu idealismo, pela sua personalidade e o que ela representa, é a última oportunidade para uma Comissão que tende a perder influência. Macron, por seu turno, acrescenta um grau de inconformismo e de voluntarismo que equilibram a prudência e os condicionamentos internos da Alemanha. Reconhece no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia um papel ainda fundamental para equilibrar a relações de forças entre os governos nacionais e contrariar a concentração do poder em poucas mãos.
Como toda a gente, o primeiro-ministro português está à espera do dia 24 de Setembro para testar a sua confiança em Angela Merkel e na capacidade da chanceler de estar à altura dos acontecimentos. Lembra que os liberais, na perspectiva de uma eventual coligação, começaram a rever os seus ideiais europeus no que diz respeito aos “pesos mortos” do Sul. Mas sabe de ciência certa que muito se jogará em Berlim.