À procura de Jim Carrey
Ele nunca existiu – sobretudo enquanto rodou Homem na Lua, em que foi ocupado pelo misterioso Andy Kaufman. Vinte anos depois, o actor libertou imagens desse desaparecimento. Recuperamos o texto sobre a estreia em Veneza do bizarro making of que a partir de sexta-feira está no Netflix.
Jim Carrey descobriu que não existe. “It’s such a fucking relief”. Homem na Lua (1999), de Milos Forman, filme em que era ocupado pela presença do cómico Andy Kaufman (1949-1984), foi a descoberta da verdade. Lançou Carrey para o espaço, ao som de Starman, de David Bowie, tirou-lhe as âncoras de identidade. Desde pequeno, quando se fechava no quarto a representar personagens para a parede, que o canadiano suspeitava que eram as personagens que o interpretavam a ele.
Num estúdio de Hollywood, em 1999, Jim tinha sido contratado pelo realizador Milos Forman (que inicialmente não o queria, o actor teve de empregar o seu voluntarismo, inundando o cineasta de testes de casting) para o biopic sobre Andy Kaufman, figura misteriosa da televisão e do show americano. Jim sempre acreditou numa comunicação secreta entre ele e Andy, como a comunicação com os golfinhos; só ele poderia fazer o filme. Em comum havia, para além da solidão no quarto, uma coisa de pais por resolver: mostrar-lhes que se vale alguma coisa, não ter conseguido dizer-lhes que eles valiam muita coisa. Numa era em que o espectáculo aprimorava rotinas de perfeição, o doce Andy abriu um buraco negro, punha-se a fazer playback com um LP ou luta livre, e a desaparecer num alter ego desagradável chamado Tony Clifton. O próprio Andy desapareceria precocemente, vítima de cancro de pulmão. Até que regressou ao estúdio de Hollywood nesse ano de 1999. Aí foi Jim Carrey que desapareceu.
Houve testemunhas disso, houve uma câmara que captou esse encontro com o nada: como alternativa ao EPK, o press kit electrónico com que os filmes se promovem, formatando as entrevistas através da rotina, Carrey teve a ideia de entregar câmaras a Lynne Margulies e Bob Zmuda, que tinham sido, respectivamente, a namorada e o cúmplice e argumentista de Kaufman. Eles que o seguissem até à lua. Seguiram. Mas a Universal achou que o que ficou disso não poderia servir como making of de Homem na Lua, faria da estrela um "asshole". Esse material foi fechado nos cofres de Carrey há duas décadas, até que o actor decidiu entregá-lo a um argumentista e a um realizador, Chris Smith. Jim & Andy: The Great Beyond. The Story of Jim Carrey & Andy Kaufman with a very special, contractually obligated mention of Tony Clifton, exibido fora de concurso no Festival de Veneza, é, segundo alguns (como Carrey), o verdadeiro filme, porque “o verdadeiro Homem na Lua passou-se atrás das câmaras” – há então uma hipótese de mash up à espera de ser concretizada. É um documentário sobre o cinema como lugar de euforia e energia psicóticas, de desdobramentos e reencarnações – Jim Carrey, Andy Kaufman, Lynne Margulies, Bob Zmuda, Milos Forman, Chris Smith… de todos eles é este filme, documento de como “fucked up this business is”. Bom resumo: “How fucked up this business is”. Sim, quando estava em negociações com Michel Gondry para O Despertar da Mente (2004), em que interpretaria um homem que apaga a memória de uma relação falhada, Carrey passava por uma fase emocional complicada da sua vida. Mas Gondry via-o “tão lindo, tão lindo” nessa tristeza que lhe pediu que não melhorasse do sofrimento, que o aguentasse por mais um ano, até à rodagem.
Destruir Hollywood
Jim Carrey diz, hoje, que “quem estava em controlo” durante Homem na Lua era Andy Kaufman; não era ele, Jim, a tomar as decisões, era “o espírito aventureiro” de Andy. Houve murros, cuspidelas, melodrama. Milos Forman pedia-lhe – a Andy, não a Jim – que lhe deixasse por favor continuar o filme, tinha um para fazer. A familia de Andy veio visitar o “filho”. A filha de Andy, que foi adoptada, que nunca se relacionou com o pai, que nunca se encontrou ou sequer falou com ele, visitou-“o” no set.
Jim não se encontrava em lugar algum, não era identificado. Notam-se os rostos de espanto de gente experimentada como Danny DeVito, Paul Giamatti ou Judd Hirsch. Só havia Andy Kaufman – ou o seu alter ego Tony Clifton, que aparecia para confundir e insultar. Entrava assim logo pela manhã na limousine em direcção ao estúdio, entravam assim, às vezes Andy, às vezes Tony, consoante o plano de rodagem – conta o motorista. Presume-se que acordava(m) assim. Quando Ron Howard começou a fazer os contactos preliminares para o seu Grinch (2000), decorriam ainda as rodagens de Homem na Lua e o realizador teve de falar ao telefone com Andy Kaufman. É um bom homem, Ron Howard, alinhou.
Chegamos ao fim de Jim & Andy: The Great Beyond..., e, no último plano, Carrey, que ao longo do filme vai comentando o que ficou para trás, esse processo de, através da improvisação, descascar tudo e encontrar o nada, diz-se sereno na sua não-ambição – coisa estranha de se afirmar na América, comenta – porque quando teve tudo o que poderia ter sonhado não foi feliz. Carrey esteve em Veneza a apresentar o filme. Para ele há uma evidente necessidade de validação que todo o sucesso do mundo talvez ainda não tenha sossegado. Espera que Jim & Andy: The Great Beyond…, filme que deixa sentir um clima de testamento, seja experimentado como uma “meditação” sobre si próprio, sobre a sua carreira. Que mostre que não tem uma colecção de caretas, que fez cada filme, “cada Doidos à Solta”, por uma razão (por exemplo, esse de 1994 fê-lo para mostrar que “a inocência” pode triunfar). Que cada filme correspondeu “a um momento espiritual” da sua vida. Cada “careta” a um momento de “honestidade” – num mundo onde toda a gente tem várias caras, diz, exibi-las é subversivo. “Eu não quis fazer parte de Hollywood, eu quis destruí-la."
Quem comenta o documentário, e aparece frondosamente barbudo na beatitude do nada, ameaçando, quiçá, regressar como Jesus Cristo, não foi a mesma pessoa que apareceu em Veneza. Quem apareceu em Veneza, sem barba, a falar sobre a “comunicação psíquica” com Jerry Lewis na infância (“Eu pensava 'está a dar o Jerry’, ligava a televisão, e lá estava ele”), sobre o “fenomenal comediante” que foi o Marlon Brando de Reflexos num Olho Dourado (John Huston, 1967), foi um homem parecido com Ace Ventura. “How fucked up this business is”.