Guardas fazem vista grossa a sexo consensual, mas repudiam negócio
Entrevistas aprofundadas a 16 reclusos levantam o véu sobre realidade pouco estudada: o discurso é "altamente homofóbico", mas não deixa de haver sexo nas prisões. Consentido. E, muitas vezes, usado como moeda de troca.
Será um dos grandes tabus do sistema prisional: há reclusos que têm sexo com reclusos dentro das celas ou das camaratas? Há reclusos que trocam sexo por bens ou serviços? Como reage o corpo da guarda quando se apercebe de um romance entre reclusos ou de um negócio de natureza sexual?
O véu foi um bocadinho levantado pela tese de mestrado de Ricardo Silva, que obteve 18 valores quando em 2016 foi defendida na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Homens ‘verdadeiros’ não fazem sexo na prisão: vivências da sexualidade na reclusão.
O estudante quis perceber o que acontece aos reclusos em estabelecimentos sem um sistema de visitas íntimas. Fez entrevistas aprofundadas a uma amostra aleatória composta por 16 homens, portugueses, heterossexuais, a cumprir pena no Norte do país. E todos, à excepção de um, admitiram que há reclusos que fazem sexo com reclusos. Alguns até relataram episódios concretos. “Mesmo à frente de toda a gente, um pôs-se em cima do caixote do lixo e o outro fez-lhe o serviço”, descreveu um.
Quase todos afirmaram que há sexo em troca de bens. Essa foi, aliás, a categoria mais mencionada. “Basta uma pessoa estar presa aqui meia dúzia de anos e não ter uma pessoa que meta aqui comida, que meta roupa, que meta dinheiro para a gente se orientar. Uma pessoa que aqui dentro não tenha direito a nada, que está sozinha no mundo, sujeita-se a muita coisa”, comentou um entrevistado. “A levar porrada, às brincadeiras, a serem gozados, a serem abusados.”
Esta realidade não cabe nos relatórios oficiais. “Esta Direcção-Geral [de Reinserção e Serviços Prisionais] não faz registo, nem tratamento estatístico de aspectos da vida particular dos reclusos, como é o caso dos actos sexuais que, eventual e voluntariamente, possam estabelecer entre si”, refere, por email.
Sendo sexo consensual, o staff não se intromete. “Isso é do foro íntimo”, resume Jorge Alves, presidente do Sindicado do Corpo da Guarda. O mesmo não acontece com o sexo em troca de bens. “Isso é um negócio e os negócios são proibidos dentro da cadeia”, esclarece. Tão-pouco com o sexo forçado, que além de processo disciplinar, dá origem a um processo-crime. Só que nem o sexo como negócio, nem o sexo como agressão costumam sair do não dito.
Discurso homofóbico
A masturbação emergiu durante a investigação de Ricardo Silva como um garante da identidade heterossexual. Todos admitem masturbar-se. Recorriam à imaginação, a cartazes de mulheres nuas ou seminuas ou a filmes pornográficos. Dois revelaram recorrer a um artefacto, a que chamam pepito, uma espécie de boneca insuflável feita com uma toalha enrolada e um orifício circulado por látex.
Ricardo Silva deparou-se com “um discurso altamente homofóbico”. “Fazer sexo com outros homens, para a maioria dos entrevistados, é abominável”, diz ele. Quase todos “asseveram que os casais homossexuais na prisão são alvo de insultos e chacota”. Alguns assumem que “perpetram essa discriminação”. Um deles até defendeu que os homossexuais fossem postos à parte.
Num ambiente de masculinidade exacerbada, tudo o que fugia à norma heterossexual era “percebido como um sinal de feminilidade e fraqueza”. Os supostos “verdadeiros” homens esforçavam-se para se demarcarem o mais possível de tudo o que se lhes afigurava feminino. Faziam-no com a atitude (o discurso homofóbico, a exaltação da heterossexualidade, a agressividade), mas também com o corpo (alguns passam horas a fazer exercício físico na cela, no ginásio ou no pátio). Os mais musculados não eram vistos como homossexuais quando tinham sexo com outros homens, mas como “homens que precisavam de se aliviar”.
No discurso da maioria dos entrevistados, o sexo em troca de bens sobressaía como uma variante da agressão sexual. “Eles pagam o que eles necessitam”, declarou um. “Se for comida, dão-lhes comida; se for tabaco, dão-lhes tabaco; se for roupa, dão-lhes roupa.” Desafiados a contar episódios de violência, não deram exemplos que envolvessem troca de bens, o que levou Ricardo Silva a concluir que “a troca de sexo por bens é uma variante do sexo consensual”.