Oportunista americano
Tom Cruise é o maior problema de uma história verdadeira da América de Reagan, afogada no fetichismo seventies de um filme derivativo e cheio de tiques formais.
Ainda não há muito tempo elogiámos a precisão e a inteligência de O Muro, o filme imediatamente anterior — e provavelmente o melhor filme — de Doug Liman, olhar desencantado sobre os “buracos” da política externa americana disfarçado de série B de acção. Existe uma linha que vai de O Muro a Barry Seal: Traficante Americano, inspirado numa história verídica da política externa americana dos anos Carter e Reagan. Barry Seal existiu mesmo, foi um piloto usado pela CIA para operações secretas na América Latina, e na passagem dos anos 1970 para os 1980 andou envolvido com os contras na Nicarágua, o cartel de Medellín na Colômbia e noutras operações mais ou menos “negras” pelas Honduras ou El Salvador.
Mas se podemos ver Barry Seal como mais um episódio na história mais ou menos sangrenta do envolvimento da hegemonia americana na política interna latina, o filme está muito longe de estar ao nível de O Muro. Em primeiro lugar por assumir um tom frívolo, “contado-ninguém-acredita”, sobre o bom rapaz da Luisiana que se deixou usar pela CIA e pelos traficantes de droga enquanto acumulava malas de dinheiro contado que já não tinha onde esconder. Se há filme para que Barry Seal remete inescapavelmente é para a Golpada Americana de David O. Russell (já de si um sucedâneo do Argo de Ben Affleck) no seu fetichismo seventies e no olhar incrédulo sobre os cruzamentos estranhos entre a lei e o crime em nome da política, carregando nos “tiques” visuais de época (a começar logo no logótipo da Universal). Liman nunca abranda o filme o tempo suficiente para equilibrar o pitoresco com a seriedade, passando completamente ao lado da dimensão trágica que a história transporta; quase todas as personagens secundárias são bonecos inexistentes, parecem “sobras” de um filme mais longo que foi retalhado na mesa de montagem.
E depois há o problema maior: Tom Cruise no papel principal, numa tentativa falhada de fuga à gaveta do herói de acção em que o actor se refugiou nos últimos anos. Falhada não porque Cruise seja mau, mas porque o charme no máximo deste “bom rapaz” que se vai safando nem ele sabe muito bem como de peripécias perigosas que o ultrapassam, espécie de Forrest Gump em oportunista que não percebe no que se mete, ignora a ambiguidade moral da história de Barry Seal. É como se o filme quisesse deixar propositadamente de fora a sua ironia trágica, prestando um mau serviço à história que quis contar. Dá vontade de perguntar se este é o mesmo Doug Liman que assinou a lucidez de O Muro.