Ethan Hawke e Paul Schrader: explosivos
O reverendo Ethan Hawke veste um colete com explosivos. Silencioso, grácil, assustador. Os diálogos sobre a fé de First Reformed, de Paul Schrader, abanaram o Lido. Onde Lucrecia Martel, com Zama, filme histórico, parece ter desistido da habitual violência do seu cinema.
A bisavó de Ethan Hawke disse-lhe para estar atento ao chamamento espiritual: Ethan, padre. Rodeado de religião, o actor foi pedindo aos santos que isso nunca acontecesse, queria estar junto das artes. A bisavó sabia melhor. O chamamento chegou a Ethan Hawke, pelas mãos de Paul Schrader, cineasta. Chegou-lhe com sangue: a personagem de um pastor em crise.
Como diz Schrader, católicos e protestantes, como ele, herdam uma “patologia”, é esta a perigosa bagagem que recebem(os): “o sangue limpa”. First Reformed (em competição), o silencioso, grácil e assustador filme com que o cineasta americano sacudiu o Lido, dá-nos um Travis Bickle em sotaina. Taxi Driver vem à memória de todos, é verdade, Schrader, argumentista desse filme de Scorsese, admite que também nunca mais se esqueceu da sua “música” – declaração que faz sentido levar em sentido literal e figurado. Na sala de montagem, alguém lhe disse que havia, de facto, Travis por ali, na solidão deste reverendo, no desejo de limpeza que não acalma uma agonia. Há mesmo uma citação de Taxi Driver em First Reformed: Schrader faz a sua versão da plongée sobre o copo com Alka Seltzer. O reverendo Toller (Hawke) bebe outra coisa, para aplacar a dor física que explicita uma agonia espiritual. Ex-capelão militar, incentivou o filho a alistar-se no exército americano e perdeu-o num conflito. A culpa corrói-o e o sangue corre na urina naquela igreja de pouca utilidade pública, mas que é ponto de visita para turistas. A crise vai ser deflagrada – em sentido literal e figurado – pelo encontro com um jovem casal de ambientalistas radicais, Michael (Philip Ettinger) e Mary (Amanda Seyfried). E com o suicídio de Michael, que deixou, além do testamento, um colete de explosivos. Toller – um Hawke silencioso, grácil e assustador, como o filme – vai descobrir ligações entre a sua Igreja e empresas multinacionais sem ética ambientalista. Veste o colete.
Há uma ameaça de thriller em First Reformed. Porque tudo se passa na intimidade da fé, das palavras, dos diálogos, das dúvidas. A fé é experiência física também. Na sala em que Toller e Mary conversam, o centro gravitacional de First Reformed, os sussurros vão adquirindo a força de gritos, essa intimidade gera uma harmonia dos corpos e gestos no espaço, uma compostura, que é das coisas mais vigorosas do filme. É uma liturgia. Vai ser violentada.
Lembramo-nos de Taxi Driver, da Luz de Inverno (1972) de Bergman, do Léon Morin, Prêtre (1962) de Jean-Pierre Melville, em que os diálogos sobre a fé eram travados por Jean-Paul Belmondo e Emmanuelle Riva. Mas os filmes não se sobrepõem à memória de coisas vividas, dos espaços que se habitaram, dos gestos que se refrearam, das palavras que se procuraram para sobreviver ao desequilíbrio entre o desespero e o amor. É um filme que só pode ter sido realizado por quem “ali” habitou. Schrader nasceu e viveu neste mundo até se fascinar pela violência e pelo sexo, nos seus argumentos e filmes. E nessa altura, início dos anos 70, escreveu Transcendental Style in Film. First Reformed é uma sintese desse percurso, é um regresso às origens, é o recolhimento depois da experiência do mundo. Por isso é o oposto de Como Cães Selvagens, o anterior filme (está em cartaz nas salas portuguesas), que desenha um movimento diferente, porque é (ainda) a experiência de fascínio e horror no exterior, e já mesmo o estertor paródico disso.
Sobre estes diálogos sobre a fé e a dúvida, Schrader não tem respostas. O final de First Reformed é selado com sangue e com um beijo (segundo Hawke, o maior que alguma vez deu num filme). Mas a natureza dessa sequência, martírio ou milagre, morte ou salvação?, fica para crença de cada espectador. Se quisermos ouvir de Schrader… “O problema não é o planeta, o problema é a humanidade. Nasci na América dos baby boomers, a minha geração fodeu o planeta que é agora o dos nossos filhos”.
Desistências
Foi com a erupção de uma responsabilidade numa personagem – como um choque traumático, teria atropelado alguém ou alguma coisa… – que há oito anos deixámos de ver filmes de Lucrecia Martel (A Mulher sem Cabeça, 2008). Essa mulher, depois, escolhia diluir o sentimento de responsabilidade, diluir-se no seu mundo. Tudo se passava no Norte da Argentina, onde ainda está de pé uma construção humana deixada pela colonização espanhola. Martel, por altura desse filme, referia-se assim à sua Salta natal: “Os lugares de poder estão ocupados por europeus ou pessoas de ascendência europeia. As classes baixas coincidem etnicamente com as populações aborígenes. Isto faz com que às diferenças de classe, que são puras construções humanas, se junte a componente racial e étnica."
Zama, exibido em Veneza fora de concurso, é o filme que nos volta a pôr em contacto com a Argentina. Prometido para as duas últimas edições de Cannes, esse reencontro foi sendo frustrado, o que alimentou um rumor de filme problemático – até porque era o seu primeiro filme de época, passa-se no século XVIII, adapta um romance de Antonio Di Benedetto (1922-1986). É verdade que Martel está lá. A personagem deste filme, Don Diego de Zama, funcionário da coroa espanhola, que espera, espera, espera, que aceitem o seu pedido de transferência, sem que ele alguma vez chegue, é alguém que, como a “mulher sem cabeça”, se vai afastando dos seus desígnios iniciais, engolido, empurrado por uma força que rejeita uma mudança no mundo. A esta passividade endémica das personagens de Martel, junta-se no cinema da realizadora (O Pântano; A Menina Santa) um trabalho sobre a percepção – através do som e da construção de um fora de campo – que é uma proposta moral e política de reorganização do olhar. Responsabiliza o espectador por aquilo que não tinha visto.
Zama não atinge essa determinação desestabilizadora. É um filme que parece ter sido atrapalhado pelas burocracias e pelos rituais do filme histórico, como se se tivesse deixado contaminar por Don Diego de Zama, desistindo Martel da violência do seu cinema, deixando desenrolar antes a sua normalidade – normalidade sonora, também, o som aqui não reorganiza ou expande o mundo. Nesse sentido, é mesmo filme de “reconstituição”.
O kitsch da competição
The Shape of Water, de Guillermo del Toro, e The Insult, de Ziad Doueiri, foram para já o momento kitsch da competição do festival. Del Toro regurgita, lambuza-se e com isso ateia o enjoo, as potencialidades e os álibis do fantástico – fantasiar e fazer política –, na história de amor entre uma empregada de limpeza num laboratório de segurança máxima (anos 60, Guerra Fria) e a criatura anfíbia que os americanos ali escondem dos rivais russos e que representa os clandestinos do nosso mundo. A música de Alexandre Desplat é ruminante.
O filme do libanês Doueiri distribui por várias personagens possibilidades e variações de trauma, memória e História, e organiza um programa de reconciliação. Tudo começa num insulto, que leva a vias de facto um libanês cristão e um palestiniano, chegam os advogados, o tribunal entra em cena e a memória é activada. (Com o suplemento telenovelesco de os advogados das partes que se opõem serem pai e filha.) Cada diálogo, situação, personagem, está construído para representar cada sensibilidade e cada ferida, numa espécie de vocação didáctica e paliativa do cinema. Que é aqui coisa que, em vez de sequências, tem tempos de antena.