Nico num biopic ao contrário
O desencanto, o cinismo de Nico é a voz do filme com que Susanna Nicchiarelli faz resistência aos clichés do biopic. Nico, 1988 abriu a secção Horizontes de Veneza, é uma miniatura que fica a crescer.
O filme de abertura da secção Horizontes, neste 74.º Festival de Veneza, tem a voz de Nico. Que biopic ainda pode ser um biopic? Uma das pistas pode ser o facto de, sendo a cantora interpretada pela actriz dinamarquesa Trine Dyrholm – que, ela própria também cantora, canta as canções de Nico nas sequências de concertos (não há playback) –, Nico, 1988, da italiana Susanna Nicchiarelli, encontra dessa forma a sua voz como “filme biográfico”. Tomando posse do corpo de Nico.
Uma definição da realizadora, na conferência de imprensa desta manhã em Veneza: “é um biopic ao contrário”. Referia-se ao facto de não ser a história de ascensão e queda, de um princípio a um fim, de que o biopic tipicamente se serve para, com máscaras de verosimilhança, fazer crer que assim toca a totalidade de um ser humano – quando, invariavelmente, o deixa escapar com a maquilhagem e o playback. Aliás, o título, Nico, 1988, já nos diz que o filme se interessa apenas por um fragmento da vida da artista nascida Christa Päffgen, dita Nico (1938-1988), os últimos tempos e os últimos concertos, quando andou em tour pela Europa de Leste. Imediatamente antes da sua morte, em Ibiza, na bicicleta, e antes da queda do Muro de Berlim e da reconfiguração da Europa – quando Nico tentava recuperar a relação com o filho Ari (Alain Delon negou reconhecer-lhe a paternidade), aceitava que a metadona pudesse fazer dela uma velhota elegante (a alternativa era acabar os dias como uma velha junkie) e sacudia qualquer tentativa de nostalgia, que nas entrevistas alguém sempre tentava, pelos Velvet Underground (“Sim, tomávamos muito LSD”), por Andy Warhol, por Lou Reed, ou as facilidades das etiquetas de “musa” ou de femme fatale.
É por aqui que o desencanto, o humor, o cinismo, talvez, mas sobretudo o desconforto da personagem perante a facilidade da tipificação, se encontram com a resistência com que Nico, 1988 contraria os clichés do biopic. Cada enquadramento, cada diálogo, cada situação criada respiram o desconforto, o desajustamento, que habitava em Nico – Trine Dyrholm, a intérprete, contava que viu, obviamente, material de concertos e entrevistas, mas que a pista essencial foi uma resposta de Nico à pergunta sobre o que é que mais lamentava na vida, “ter nascido mulher, não ter nascido homem”. É por isso um filme sempre à beira do burlesco, de um burlesco congelado. É esquálido, desassombrado, seco: no retrato de uma época que hoje parece pertencer a outro mundo; na mistura de imaginação e reconstituição (personagens que, mudando de nome, existiram – como o agente de Manchester irremediavelmente enamorado de uma cantora sem amor para dar a não ser o das canções –, outras que são uma invenção a partir de figuras que rodearam Nico).
Nico, 1988 não faz de conta que Trine Dyrholm é Nico, explicita, antes, que Trine e todos os outros a convocam, como um chamamento. Por isso é tão natural o aparecimento das imagens de Nico e dos Velvet Underground captadas no seu tempo por Jonas Mekas – são fragmentos que irrompem no filme, como se estivessem sobretudo na memória de uma equipa de rodagem. É que outra das coisas bonitas de Nico, 1988, filme de onde se sai revitalizado perante uma crença destas, e uma “lata”, nas possibilidades de intervenção num género, é que é um tocante retrato de grupo. Se o filme de abertura, e que abriu também a competição, da 74.ª edição de Veneza, Downsizing, de Alexander Payne, vai diminuindo à medida que as ambições e a escala aumentam, Nico, 1988 é um filme sempre a crescer na sua determinação de miniatura.