O vermelho e o vermelho

Um romance a duas cores: a do sexo e a da morte violenta.

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Porno-melodrama, abjeccionista e burlesco, O Casamento é pura pulp fiction, paródica e exasperada

Na véspera do casório de sua filha caçula — Glorinha de sua graça e virtude  —, cerimónia com capa da Manchete apalavrada e ministro convidado e tudo — e talvez para não pensar no anunciado “defloramento” da moça —, o “homem de bem” Sabino Uchoa Maranhão, “director-presidente” de uma imobiliária carioca, senhor de um “bilhão, em dinheiro vivo”, fora outros defeitos, rememora uma longínqua noite de sexo mercenário frustrado no “prazer solitário”; recorda o pai, que nunca sorria, “como se o sorriso fosse um luxo, uma sensualidade”, e que “morrera defecando”, o pai, nas “fezes da agonia”; sopesa a “besta do Drummond” (ele prefere o Bilac); e pensa na pederastia que “pingava do tecto, escorria das paredes” em Copacabana, segundo o ginecologista Camarinha, amigo da família; “uma pederastia sem prazer, sem vocação”. Para cúmulo. Início promissor? Sem dúvida. E o meio e o fim não descasam: haverá assassínio, estupro, suicídio, incesto… enfim, todo o catálogo rodriguiano, sem tirar (obsessão) nem pôr (pretensão).

Talvez se possa dizer que a redescoberta de Nelson Rodrigues (1912-1980) em Portugal ter-se-á ficado a dever a uma colecção intitulada Curso Breve de Literatura Brasileira que, há pouco mais de dez anos, Abel Barros Baptista dirigiu para a editora Cotovia. Constou nessa histórica colecção um volume coligindo três peças centrais do “teatro desagradável” do autor, duas das quais haviam chegado a seu tempo a esta margem do Atlântico via “cinema (mais ou menos) novo” brasileiro: O Beijo no Asfalto e Toda a Nudez Será Castigada. A editora Tinta-da-China iniciou entretanto, no ano passado, uma colecção dedicada à obra de Rodrigues, tendo publicado já um volume de contos, A Vida Como Ela É…, um volume de crónicas, O Homem Fatal, e um outro de memórias, A Menina Sem Estrela. Publicou agora o romance O Casamento, ao qual se seguirá O Anjo Pornográfico, a biografia de Rodrigues escrita por Ruy Castro. Além de ter sido o único romance que o forçado da escrita Nelson Rodrigues não escreveu para publicação folhetinesca, O Casamento (1966) chega-nos ainda abrilhantado pela subsidiária glória de haver sido proscrito pela ditadura brasileira de então. Em nome dos bons costumes e da sagrada família. Tal transe confirma, mais uma vez, a proverbial futilidade dos censores. No conteúdo e no continente, O Casamento é um romance ideologicamente inofensivo e esteticamente conservador. Ou o inverso. É suposto ser isto um elogio.

A acção do romance decorre na véspera e no próprio dia (mero epílogo) do casamento da filha mais nova do protagonista e confunde-se, nos seus sucessivos e "escandalosos" episódios, revelações e confissões, com a daquelas obras literárias e cinematográficas (& etc.) que naquele tempo (e hoje ainda) pretendiam (e pretendem) endireitar o mundo castigando-lhe, pelo sarcasmo, os maus costumes. Suposta "denúncia social", portanto. O diálogo das personagens é o recurso quase exclusivo do narrador omnisciente e a perdulária loquacidade daquelas chega a tornar-se maçadora e sem função aparente. O registo do narrador, que por vezes tão bem espevita a nossa atenção com clamorosas mudanças dos tempos verbais, repete-se: “ardente humildade”, “alegria desesperada”, “alegre crueldade”, “cruel alegria”, “doçura cruel”, “desesperado prazer”, “tédio cruel”…

O antigo génio apocalíptico de Rodrigues afirma-se tanto melhor quanto mais escatológico é o seu humor, uma vezes vermelho, outras vezes vermelho. As cores do sexo e da morte violenta. O Casamento é um romance menstruoso e “orgânico”: a determinada altura, vemos Glorinha “crispada até o ânus” e “Sabino imagina que o defloramento de uma menstruada será uma carnificina” (p. 66); “E, de repente, Sabino pensa: ‘Será que o hálito de Teófilo tem cheiro de esperma?’”; “A praia de sua infância, no Rio Grande do Norte, era vermelha de pitangas bravas. E, súbito, ele [Sabino] descobre por que ninguém esquece o mar. O mar cheira a esperma, urina velha, sexo mal lavado.” (p. 260).

A acção termina com o protagonista expiando voluntariamente um crime alheio, num gesto hiperbólico de redenção cómica talvez inesperado e que, definitivamente, inviabiliza uma leitura realista do romance. Porno-melodrama, abjeccionista e burlesco, O Casamento é pura pulp fiction, paródica e exasperada.

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