Do mundano ao sublime, Nelson Rodrigues em palco
Até 22 de Janeiro, o Teatro da Garagem leva à cena contos e crónicas de Nelson Rodrigues, tentando mostrar a complexidade de uma figura polémica e fascinante.
Tendo-se apresentado em várias ocasiões no FestLip – Festival Internacional de Língua Portuguesa –, o Teatro da Garagem foi convidado a tomar parte, em 2016, numa edição temática dedicada à obra de Nelson Rodrigues. Carlos J. Pessoa, dramaturgo, encenador e director da companhia (a par de Maria João Vicente), tivera oportunidade de “trabalhar no âmbito académico” algumas peças do autor brasileiro como Vestido de Noiva ou Valsa Triste, mas achara-as sempre demasiado herméticas e nunca se deixou seduzir pelos textos. Ficou a pensar, ainda assim, no convite de Tânia Pires, directora do carioca FestLip, até que intrigado pelo facto de Ferreira Fernandes, jornalista do Diário de Notícias, citar amiúde as crónicas de Nelson Rodrigues nos seus textos, decidiu tentar puxar o novelo por outro lado.
Em vez da obra para palco, Maria João deitou a mão a alguns contos e crónicas. “Fui ler e aquilo, de facto, era muito interessante e tinha um enorme potencial cénico”, revela ao PÚBLICO, agora que A Vida como Ela É está em cena no Teatro Taborda, base de operações do Teatro da Garagem, até 22 de Janeiro.
Na altura, a Tinta-da-China ainda não dera à estampa os três livros que, ainda em 2016, marcaram a entrada em força do autor nas livrarias portuguesas – as crónicas de O Homem Fatal, as memórias de A Menina sem Estrela e os contos de, precisamente, A Vida como Ela É, mas Carlos J. Pessoa rapidamente percebeu que naqueles textos descobria o contrário da escrita teatral que antes o desinteressara. “Estes textos que usamos no espectáculo são pequenas histórias, historietas do quotidiano, extremamente objectivas e claras, muito bem escritas e com uma carpintaria verbal fantástica.”
Do imenso manancial assinado pelo jornalista, cronista e dramaturgo, o Teatro da Garagem escolheu cinco textos autónomos, que tanto versam a comparação de Pelé a vultos da cultura clássica como Miguel Ângelo e Dante, histórias de alcova e adultério – “coisas aparentemente triviais, que podiam não fazer mais do que aquele noticiário escabroso e sensacionalista, mas que ele torna em poesia”, diz o encenador –, um conto em torno da morte, do desejo e da aceitação do fim, e uma outra história de futebol em que a conquista de uma Copa do Mundo pelo Brasil é associada ao filme O Pagador de Promessas do brasileiro Anselmo Duarte, vencedor do Festival de Cannes em 1962. “É um momento em que ele acredita que o Brasil vai viver um renascimento, aquela ressurreição que ao longo das nossas vidas vamos assistindo ser anunciada várias vezes, em que sempre parece que o Brasil vai sair do buraco e ser tudo aquilo que promete e, entretanto, volta a cair no buraco.”
Comum a todos os textos surge aquela que é, no entender de Carlos J. Pessoa, a grande qualidade literária de Nelson Rodrigues: a capacidade de sujar as mãos com “um acontecimento mundano e dar-lhe um carácter denso, elevado, sublime”.
Figura complexa e fascinante
O Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues lavrada por Ruy Castro (que irá também ser publicada este ano em Portugal pela Tinta-da-China), vai buscar o seu título à autodefinição do autor. Para o director do Teatro da Garagem, é uma contradição justa do ser complexo que A Vida como Ela É também pretende mostrar em palco. O lado angelical, defende, estará impresso nessa apetência para transformar em sublime tudo o que esteja carregado da mais quotidiana existência; o pornográfico virá da tentação de “espreitar pela fechadura da porta e por debaixo das saias das senhoras”. “Há um lado quase concupiscente e de permanente erotismo na sua escrita”, diz Carlos J. Pessoa. Para além de que o discurso muitas vezes misógino e reacionário de Nelson Rodrigues sempre fez dele uma figura capaz de despertar a ira e espoletar polémicas com a ponta da caneta.
A Vida como Ela É, peça estreada no último FestLip e só agora apresentada em Portugal, tem por preocupação maior mostrar as diferentes facetas de Nelson Rodrigues, não subscrevendo necessariamente o Teatro da Garagem as palavras do autor brasileiro. “O tipo acreditava que a mulher devia levar pancada”, diz o encenador, “tem um discurso que não é nada aceitável à luz não apenas do que é o mundo hoje mas também de alguma racionalidade. Sei que era muito apreciado por uma certa direita graças a esse discurso do macho latino, mas aquilo que queremos é confrontar o espectador com aquilo que pudemos recolher acerca da personalidade artística, literária, política e cívica de uma figura complexa e fascinante da literatura e da cultura brasileira. Não dá para se lhe colar apenas um rótulo simplista.”
Daí que A Vida como Ela É parece ter por propósito contradizer o seu título. Não há nada de taxativo nem axiomático. Há simplesmente a escrita de um homem que começa em ritmo de comédia e passa a reflexiva e intimista, acolhendo a complexidade do mundo sem tentar achatá-lo.