O atentado terrorista de Barcelona: o que correu mal?
Independentemente da opinião que se possa ter sobre a questão da independência da Catalunha, parece claro que esta afectou negativamente o resultado da actuação preventiva do atentado.
1. Tal como qualquer atentado terrorista, o que ocorreu a 17/8 em Barcelona tem duas facetas em que pode e deve ser analisado: a reactiva e a preventiva. Quanto a esta última — a reactiva ao atentado —, a actuação da polícia da Catalunha, os Mossos d’Esquadra, foi inquestionavelmente eficaz, rápida e corajosa, evitando a morte de mais inocentes. Num espaço de tempo relativamente curto foi também desmantelada a totalidade da organização que esteve por trás dos atentados, tendo este sido mortos ou detidos (tudo indica isso pelos dados conhecidos). Nesse aspecto, a actuação merece ser elogiada. Como já referido, constitui até um precedente de um modelo de actuação policial rápida e eficaz no pós-atentado. Mas a questão está longe de se esgotar aí. A luta antiterrorista tem uma outra faceta crucial — a actuação preventiva. É isso que se impõe analisar com algum detalhe e deve ser motivo de preocupação.
2. Na sua faceta preventiva, o caso levanta múltiplas interrogações e questões delicadas como já fiz notar num artigo anterior (ver “Jogando com o fogo: a Catalunha e os jihadistas marroquinos” in Público, 22/08/2017). Aqui ressaltam dois aspectos: (i) o da descoordenação resultante das rivalidades entre o governo espanhol e a Catalunha; (ii) o facto de o planeamento do atentado, em muitos aspectos, ser algo que pode ser qualificado como “um caso de manual”. Vamos por partes. Primeiro, há várias interrogações importantes que subsistem e relembro novamente. Não seria possível ter detectado os movimentos dos mais de uma dezena de indivíduos na preparação dos atentados, num processo feito ao longo de vários meses? Não teria sido natural ter seguido as actividades do imã de Ripoll, Abdelbaki Es Saky, pelos seus antecedentes? Não poderia a explosão ocorrida na casa de de Alcanar, ocorrida na noite anterior ao do ataque nas Ramblas, ter permitido chegar aos autores do atentado, evitando-o? Qual a razão pela qual não foram colocadas barreiras de protecção nas Ramblas, dado o precedente dos atentados de Nice e de um mercado de Natal em Berlim?
3. Um dos problemas deste caso — e, ao que tudo indica, afectou o resultado da acção preventiva —, é que se converteu numa competição entre a Catalunha e o governo espanhol de Madrid. Essa competição e rivalidades internas ligadas à ambição autonomista / soberanista da Catalunha e negada pelo governo espanhol, projectam-se nas competências das forças policiais e de segurança. Simbolicamente, essa é uma função tradicional de soberania do Estado. Assim, temos, por um lado, os Mossos d’Esquadra (Catalunha), que pretendem ter competências similares aos de uma polícia nacional em todas as áreas. Por outro lado, temos as forças de segurança nacionais espanholas, nomeadamente o Cuerpo Nacional de Policia e a Guardia Civil, com equipas TEDAX (Técnico Especialista na Desactivação de Artefactos Explosivos). A questão da Europol é um exemplo claro das rivalidades e problemas de coordenação. O governo da Catalunha (a Generalitat) reivindica que os Mossos d’Esquadra, tal como uma polícia nacional, deve participar nas reuniões da Europol e ter acesso directo às suas bases de dados de informações de segurança. O governo espanhol tem entendido que isso cabe aos corpos de polícia nacional. (A situação estará agora em fase de alteração, para uma participação dos corpos de polícia da Catalunha e País Basco.)
4. Os vários corpos da polícia nacional espanhola criticaram duramente a actuação dos Mossos d’Esquadra da Catalunha (comunicado de 22/08/2017 das associações profissionais / sindicatos policiais espanhóis). Nesse comunicado, apontam o dedo às autoridades políticas da Catalunha, que os terão “marginalizado de forma dolosa”, nomeadamente “impedindo o acesso da equipa TEDAX da Guardia Civil à casa de Alcanar” com o intuito de "transmitir uma imagem para o exterior das nossas fronteiras de um Estado catalão ‘auto-suficiente’”. Acusam as autoridades políticas da Catalunha de “flagrante violação dos acordos de cooperação” interna. Mais: consideram terem prejudicado o resultado da investigação pelo desconhecimento de que Abdelbaki Es Saky era “discípulo de um dos principais detidos pela polícia nacional contra o terrorismo jihadista na operação ‘Chacal I’ de 2007“. Importa realçar que estes são precisamente os dois pontos mais importantes de uma actuação preventiva: a explosão ocorrida, antes do atentado, na casa de Alcanar, e o percurso do imã de Ripoll, Abdelbaki Es Saky. Na contra-argumentação do governo da Catalunha isso apenas reforça a sua reivindicação de terem necessidade de acesso a todas as informações de segurança, como um corpo de polícia nacional.
5. Ainda sobre este aspecto crítico da descoordenação e rivalidade entre polícias — fundamentalmente reflexo de um problema político bem mais complexo e difícil, que é a ambição de independência da Catalunha —, há outro dado relevante. Sabe-se agora também que a presença, na Bélgica, em Vilvoorde, de Abdelbaki Es Saky, levantou suspeitas à polícia belga. Um dado interessante e que vale a pena realçar pela positiva, é que foram as próprias populações muçulmanas locais a contactar a polícia na Bélgica para saber dos antecedentes Abdelbaki Es Saky, Nessa sequência, foram pedidas a Espanha informações, nomeadamente se este teria ligações com o terrorismo. A polícia belga foi informada que não havia registos nesse sentido. É relevante se saber se esses contactos foram feitos com os corpos da polícia nacional espanhola e/ou os Mossos d’Esquadra da Catalunha. O ministro do Interior espanhol, Juan Ignacio Zoido, afirmou que as forças de segurança que dependem de seu departamento não receberam qualquer comunicação das autoridades belgas. Sabe-se agora que os contactos foram feitos directamente com os Mossos d’Esquadra, ainda que de forma informal. Adivinha-se como este aspecto vai ser usado como arma política de arremesso no jogo do empurra de culpas pelo que não foi feito — e deveria ter sido —, a nível de uma vigilância e actuação preventiva. Afinal, Abdelbaki Es Saky foi grande mentor e instigador dos atentados. A tudo isto acresce ainda outra controvérsia de relevo, que evidencia, num outro plano, a tensão entre direitos humanos e segurança, algo que o terrorismo frequentemente levanta. Abdelbaki Es Saky — que era de nacionalidade marroquina —, apesar de ter sofrido uma condenação penal, nunca chegou a ser expulso do território espanhol. Contestou judicialmente a decisão administrativa de deportação, tendo vencido o caso em 2015.
6. Como já notado, o atentado de Barcelona pode ser considerado um “caso de manual”, por revestir características já anteriormente diagnosticadas e bem conhecidas nos meios de segurança. Um mentor que passou pela prisão onde se terá radicalizado, ou radicalizado ainda mais. Uma radicalização dos jovens que foi feita através de contactos numa mesquita, prosseguidos depois, de forma encoberta, fora dela. Uma rede de relações pessoais e de proximidade entre os perpetradores, tendo, por detrás, um mesmo país de origem — Marrocos. Aqui cabem duas pequenas notas. Com a Internet e as redes sociais instalou-se a ideia que a radicalização se faz fundamentalmente por aí. Este caso, que é um modelo clássico de radicalização comum na era anterior à massificação da Internet e redes sociais — usado frequentemente pela Al-Qaeda e afins —, parece ter sido subestimado por parecer ultrapassado. A segunda é sobre algumas políticas da Catalunha, que tem procurado seduzir o voto das muitas populações árabes-islâmicas aí residentes — especialmente as oriundas de Marrocos —, na perspectiva do referendo sobre a independência. Na versão oficial da Generalitat trata-se apenas de melhorar a integração dessas comunidades. Mesmo admitindo que foi só esse o objectivo, o que é muito improvável neste contexto político, tomou medidas questionáveis do ponto de vista de uma prevenção eficaz do islamismo-jihadismo, como expliquei no meu artigo anterior.
7. Independentemente da opinião que se possa ter sobre a questão da independência da Catalunha — que não é o tema aqui em análise, mas desperta muitas paixões e ódios —, parece claro que esta afectou negativamente o resultado da actuação preventiva do atentado. A sombra do referendo marcado para 1 de Outubro próximo, paira (e condiciona) a actuação da Generalitat (o governo autonómico da Catalunha) e do governo espanhol, que está em rota de colisão com o mesmo. Nesse jogo político, não há qualquer dúvida que a questão das competências dos Mossos d’Esquadra face às polícias nacionais do Estado espanhol — o Cuerpo Nacional de Policia e a Guardia Civil —, se transformou numa questão de Estado e de soberania. Não há também dúvidas que a Generalitat quer tirar dividendos políticos disso e de que o governo espanhol o tenta impedir, por vários meios. Mas este jogo político é perverso. A perda de eficácia na actuação preventiva foi um dano colateral deste. Nunca teremos a certeza se o atentado poderia sido evitado por uma melhor circulação de informação das polícias nacionais para a Catalunha e o inverso. Ou se teriam evitado as mortes das Ramblas com medidas simples, mas que valeria a pena ter tomado antes (agora vão ser tomadas), como a colocação de barreiras à circulação de veículos automóveis. Fica a sensação fundamentada que se poderia ter feito muito mais na actuação preventiva. Foi isto que correu mal no atentado de Barcelona de 17/8. Importa evitar que se repita.