O Estado Sonangol
Na expectativa das eleições que se aproximam, é na petrolífera que se vislumbra o futuro de Angola.
As eleições angolanas realizam-se esta quarta-feira e poucas dúvidas restam sobre os resultados finais. Justas ou não, é quase certo que assistiremos a mais uma vitória do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no poder desde a independência do país. A mais recente sondagem de grande dimensão publicada no final de Julho pelo Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela, atribui 60% das intenções de voto ao MPLA com a novidade de ver a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) cair para o terceiro lugar atrás da Convergência Ampla de Salvação de Angola - Coligação Eleitoral (CASA-CE).
Aconteça o que acontecer, no entanto, a situação económica de Angola tem pouca esperança de melhorar no curto prazo. Isto acontece porque o sustento da economia angolana não advém de quem está no poder - ainda que ao fim de 37 anos uma liderança fresca prometa algumas novidades -, mas da grande companhia nacional de petróleo de Angola, a Sonangol, e nesse campo, as coisas já estiveram melhor.
Em Angola, o petróleo corresponde a mais de 90% das exportações e é o maior contribuinte para o seu produto interno bruto e para o orçamento estatal.
Quem controla o petróleo é a Sonangol, e quem controla a Sonangol controla Angola e o futuro dos angolanos. Portanto, a sustentabilidade da empresa é talvez mais importante para a população do que quem ganha a guerra pelo trono de Luanda. Se durante décadas, os líderes do país souberam deixar a petrolífera fazer o seu trabalho na exploração, produção e gestão de contratos petrolíferos, fazendo apenas uso dos vastos recursos financeiros que a empresa entregava ao Estado, os últimos anos têm sido menos virtuosos e arriscaram enterrar o sustento financeiro do país.
Fissuras no esqueleto
Segundo os resultados apresentados pela Sonangol em Julho deste ano, Angola foi o maior produtor de petróleo africano em 2016, com uma média de 1,7 milhões de barris por dia, uma pequena descida de 3% em relação a 2015. Uma parte significativa desta produção pertence à Sonangol, que recebe uma percentagem pela produção em campos onde é parceira não operadora.
Em qualquer análise do futuro de uma indústria petrolífera neste momento, é obrigatório reconhecer o impacto da vertiginosa queda dos preços do petróleo que começou em Junho de 2014, de mais de 100 dólares por barril, até ao início de 2016 quando andou a rondar os 30 dólares. Desde aí o barril já recuperou cerca de 20 dólares por barril. É difícil subestimar o impacto desta queda na economia angolana. O Produto Interno Bruto de Angola encolheu de 126 mil milhões de dólares em 2014 para 81 mil milhões de dólares em 2016.
No caso da Sonangol, este colosso financeiro teve em 2016 custos médios de produção por barril de petróleo de cerca de 7,62 dólares, uma baixa de 18% em relação a 2015. Mesmo à média de $43 por barril que se registou em 2016, a mais baixa desde 2004, a empresa deveria ser rentável. No entanto, o modelo administrativo da empresa está desenhado para atingir um break-even com o preço do barril a 80 dólares. As razões para isto? A Sonangol já não é uma empresa de petróleo.
A Sonangol é uma empresa de distribuição, de refinagem, de logística, de aviação, bancária, financeira, de catering, de cuidados médicos, de imobiliário... e também produz petróleo. Ao longo dos anos, o afastamento da Sonangol do seu centro de especialização tornou-a num monólito que envolve todos os sectores económicos angolanos.
Duras heranças
Esta recentralização da actividade advém da estratégia política da liderança de José Eduardo dos Santos na última década que passou basicamente pela “sonangolizaçao” da economia angolana. A petrolífera tornou-se aos poucos, em si, a economia. Quando começou a estender as suas actividades a sectores que lhe eram estanhos, onde lhe faltava especialização e competência e cujas posições directivas eram oferecidas como recompensa política, o capital da empresa começou a ser esticado de forma insustentável.
Em 2015, Francisco de Lemos, o presidente do conselho administrativo da Sonangol até ao fim do mesmo ano, foi autor de um relatório confidencial que acabou por chegar à imprensa e que indicava que a Sonangol, a coluna vertebral do Estado, estava à beira da falência. Isto dava-se em grande parte devido a contratos de serviço fraudulentos desenhados para o enriquecimento indevido de quadros administrativos e governamentais. O conteúdo do documento foi depois desmentido, mas o estrago estava feito.
Segundo os documentos de Francisco Lemos, a única divisão lucrativa da Sonangol é a de exploração e produção petrolífera, que hoje em dia é completamente controlada por empresas estrangeiras que mantêm o know-how técnico e se limitam a entregar os dividendos da venda do petróleo à Sonangol. Os rendimentos do petróleo pagam por tudo o resto antes das sobras chegarem ao orçamento governamental. Os problemas estruturais da Sonangol não advêm, portanto, particularmente da corrupção. Apesar de por exemplo, um relatório de 2011 do Fundo Monetário Internacional ter revelado que, entre 2007 e 2010, 32 mil milhões dólares desapareceram sem rasto das contas da empresa. Apesar disso a destreza técnica e profissional da administração da empresa permitiu-lhe ao longo dos anos e até 2015, obter créditos com facilidade de bancos internacionais e estabelecer parcerias lucrativas. A Sonangol parece agora incapaz de aceder aos recursos necessários para cumprir com as suas obrigações.
Segundo o próprio presidente, nos primeiros seis meses de 2016, nenhum dividendo da Sonangol chegou aos cofres do Estado. Infelizmente, o Estado é agora o menor dos problemas da Sonangol.
Em Outubro de 2016, corriam rumores em Luanda de que a Chevron, maior produtora de petróleo do país e uma figura histórica na indústria petrolífera angolana, tinha feito um ultimato à Sonangol. Ou a empresa nacional pagava a dívida que tinha de 300 milhões de dólares à parceira americana, ou a Chevron iria accionar uma cláusula do contrato que lhe permitia fazer uso dos 40% de produção, correspondente à fatia da Sonangol, para se ressarcir das dívidas.
Esta decisão teria um efeito devastador para as contas da Sonangol que se estruturam sobre créditos baseados na sua produção petrolífera. Enquanto os valores exactos pecam por falta de confirmação da empresa, estimativas indicam que a Sonangol deve mais de mil milhões de dólares a quatro das maiores produtoras de petróleo de Angola, a americana Chevron, a italiana ENI, a inglesa BP e a francesa Total. Em Outubro, a empresa angolana concordou em pagar o que devia à Chevron. Para além das grandes empresas internacionais, protestos têm surgido de vários sectores, com empresas angolanas e estrangeiras, pequenas e grandes, a acusarem a empresa angolana de não cumprir com as suas obrigações financeiras. Acima de tudo a Sonangol perdeu o reconhecimento internacional que tinha mantido durante décadas, e sem confiança não há créditos bancários.
Em conversa com o Público, Ricardo Soares de Oliveira, professor associado de política africana na Universidade de Oxford enfatiza esta questão. “Ainda que Angola ofereça um panorama de estabilidade política no contexto africano e de recursos provados que continuam a ser atrativas para investidores internacionais, a reputação da Sonangol está de pantanas. Previsibilidade, que foi uma palavra muito utilizada ao longo dos anos para descrever a Sonangol, deixou de se ouvir no último ano e meio”. Ele conclui que "hoje em dia a empresa está atolada na política angolana, na personalização do poder, na confusão entre privado e público. A companhia que durante décadas foi uma mais valia para o país, é hoje o retrato dos problemas da economia angolana”.
Uma nova direcção
Os 300 milhões de dólares devidos à Chevron correspondem às obrigações da Sonangol pela actividade no bloco de produção 0 [zero], operado pela americana, pelos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2015. Os pagamentos à Chevron pararam quando a nova presidente do conselho de administração da Sonangol, a mulher mais rica de África e a filha do presidente José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos, tomou posse em Junho.
Desde que foi nomeada, a Sonangol suspendeu negociações de vendas de activos e embarcou num processo de reestruturação interna que tem passado maioritariamente por cortes de custos e controlo de despesa. Será do foro pessoal tecer opiniões sobre se um orçamento de 10 milhões de euros para festas de confraternização num ano de retenção de custos é administrativamente sensato, ainda que isso represente um corte de mais de 80% em relação ao ano anterior.
A verdade é que a administração de Isabel dos Santos tem transmitido uma imagem de austeridade dentro da empresa, redesenhando a estratégia administrativa para se adaptar a uma realidade do barril de petróleo a 45 dólares, fazendo fortes cortes operacionais para optimizar custos com logística e distribuição. A reestruturação passa pela divisão da empresa em três áreas, uma dedicada a activos de gás e petróleo, outra ao sector logístico, e a última responsável por activos não relacionados com petróleo, como estaleiros e unidades de produção de equipamento não essencial, nos quais a empresa irá desinvestir, numa tentativa de lidar com as suas dívidas e gerir um portfolio mais equilibrado. A actual administração tem sido muito crítica da falta de reacção dos anteriores dirigentes à queda do preço do petróleo. Desde a ascensão de Isabel, as companhias petrolíferas queixam-se de grandes atrasos na aprovação de planos de investimento para exploração ou desenvolvimento de reservas nos blocos que exploram em colaboração com a Sonangol. É de imaginar que isto aconteça precisamente porque a Sonangol está descapitalizada e sem recursos para cumprir com as suas obrigações operacionais. Em Março, a empresa anunciou que pretendia explorar reservas marginais, um termo que se refere a descobertas petrolíferas de baixo interesse, que são em geral preteridas em favor de projectos maiores. A petrolífera estima que quatro mil milhões de barris são recuperáveis nestes reservatórios, resta saber a que preço. Esta decisão vai em linha com uma política de optimização de recursos e restrição de investimento, mas deixa as petrolíferas parceiras num estado de impaciência no que toca ao trabalho da Sonangol. A Chevron e a Exxon já anunciaram que consideram desenhar uma estratégia de saída das suas obrigações em Angola, se a situação não se alterar.
Particularmente no que toca à dívida da Sonangol, a queda do valor kwanza contra o euro torna o pagamento da dívida de 13 mil milhões de euros a um consórcio de bancos credores europeus muito mais complicada. Desde Março de 2015, o euro passou de valer 112 kwanzas, para valer 196, hoje.
A nação do ouro negro
Outra questão relevante prende-se com as reservas petrolíferas. Em 2016, foram encontrados menos 30% de novas reservas de petróleo que no ano anterior. Na verdade, as reservas do país têm vindo a diminuir progressivamente nos últimos anos. Segundo o BP Statistical Review, publicado anualmente pela petrolífera inglesa BP, em 2014 as reservas totais provadas de Angola montavam a 12,7 mil milhões de barris de petróleo. Em 2015, o país registava 11,8 mil milhões de barris e no ano passado fechou com uma contagem de 11,6 mil milhões de barris. Neste momento Angola tem reservas para continuar a produzir ao nível actual durante mais 17 anos e meio, menos um ano e meio do que se estimava em 2015. O que isto quer dizer é simples, sem exploração não existe sustentabilidade produtiva, e a galinha dos ovos de ouro de Angola vai-se debilitando aos poucos.
Para termo de referência, a Sonangol perfurou 27 poços de exploração em 2014, sete em 2015 e três em 2016. No que toca a sísmica 3D e 4D, métodos de prospecção que utilizam sondas para avaliar a estrutura do subsolo, em 2016, a empresa adquiriu 1052 km2, menos que em 2015, quando adquiriu 5700 km2, e menos que em 2014, quando adquiriu 8800 km2.
Esta questão das reservas é extremamente relevante para a Sonangol, já que a sua reposição bem como a compensação das perdas futuras de produção devido ao natural declínio produtivo dos poços existentes implicam grandes gastos financeiros durante largos períodos de tempo.
A situação da Sonangol é de facto difícil, mas uma coisa é certa: qualquer que seja o Presidente a partir de quarta-feira, terá de depender da Sonangol para sustentar o sistema económico angolano, e não dependerá do líder do governo colmatar o colapso financeiro da empresa. Se não lhe for devolvida a independência técnica, e se a administração da Sonangol não souber cortar nos sectores não produtivos, controlados por membros do regime sem capacidade técnica, para se focar na produção petrolífera - a sua única divisão lucrativa -, nem uma subida do preço do petróleo salvará a petrolífera angolana de um colapso financeiro.
O Estado Sonangol morrerá por dentro.
Analista e repórter de mercados energéticos, co-autor de Big Barrels, African Oil and Gas and the Quest for Prosperity