"A religião não é um estatuto que se carrega. É uma prática que se discute"
As Humanidades definem-se por estarem permanentemente em crise. Isso não implica que se deixe de perseguir o que há de melhor no homem, refere Isabel Capeloa Gil, humanista, reitora da Universidade Católica, numa conversa onde deixa claro que não vale tudo.
Há sempre um sorriso determinado num discurso onde a dúvida se manifesta como essencial ao pensamento. Isabel Capeloa Gil — teórica da cultura, formada em Línguas e Literaturas Modernas, doutorada em Estudos Alemães, humanista, apaixonada por Hoffmannsthal, leitora dos gregos antigos — gosta do que faz, mas gostaria de fazer outras coisas. Como Física. Ela é a segunda mulher na reitoria da Universidade Católica onde quer afirmar os estudos humanísticos como essenciais para pensar o presente. Aos 52 anos prepara-se para celebrar os 50 daquela instituição com uma série de conferências sobre futuros globais e trazer visionários para saber como eles vêem o que aí vem.
Há muito que se fala de crise nas Humanidades. Que crise é esta?
O que temos é uma crise dos mediadores, de descrédito dos grandes arautos que nos ajudavam a interpretar o mundo.
É uma crise de pensadores, de intelectuais?
Os intelectuais têm vindo sistematicamente a falhar nas suas projecções e visões do mundo. Mas isso se calhar faz parte da actividade do intelectual, ser a voz crítica que consegue olhar além do barulho do presente com uma posição. Num mundo com tantas incertezas, cheio de incongruências, temos que navegar entre modelos incongruentes. Os modelos fixos entraram em crise. A crise das Humanidades não vem de agora, vem da necessidade de uma navegação à vista, de uma adaptação constante de posição, de assumir uma perspectiva e de, ao mesmo tempo, conseguir corrigi-la. Os problemas são demasiado complexos para visões rígidas, o que não quer dizer que não tenhamos uma componente ética nesse olhar. É aqui que as Humanidades têm um papel essencial.
Que papel é esse?
Elas estão comprometidas com a própria definição do humano, em tentar produzir ou manifestar o que de melhor o ser humano pode produzir artisticamente, criar, contribuir para a sociedade. A defesa do que é a integralidade do ser humano. Cícero, um dos primeiros pensadores a teorizar o tema da cultura e esta dimensão da cultura humanística, começou a utilizar o termo tirando-o do seu território: a cultura da terra, a agricultura. Cultura animae, cultura das almas, a cultura do ser humano, associada ao cultivar, ao tentar despertar o que de melhor os seres humanos podem produzir. É uma visão de horizonte utópico, e que se afasta sempre. Apesar de todos nós falharmos, de sermos contraditórios com enorme apetência para errar e fazer mal, podemos fazer melhor. Aquilo que define as Humanidades é estar permanentemente em crise. Se olharmos para o século XX vemos grandes momentos de falência desse olhar orientador sobre o futuro.
São momentos em que se pedem soluções?
São momentos em que se pede uma visão clara sobre o futuro. O final da II Guerra Mundial é um dos momentos. Podemos citar outros, mas esse demonstra a falência dos pressupostos de que a educação humanista torna os indivíduos mais aptos a responder ou a reagir contra a dimensão conflitual, negativa, violenta, destrutiva. O exemplo da barbárie da II Guerra Mundial é uma utilização das Humanidades para fins que não são aqueles de que falávamos, de contribuir para um melhor horizonte para a sociedade, mas a destruição de parte dessa sociedade: práticas não de inclusão, mas de exclusão; práticas de utilização da ciência para a destruição de determinados grupos. Karl Jaspers, a seguir à II Guerra escreveu uma carta sobre o Humanismo, [Martin] Heidegger também. Falam da necessidade de voltar aos valores dos Humanismo, mas um Humanismo já não utópico, que não acredita que as Humanidades salvam o mundo, ou que o cultivo da Literatura, o conhecimento da História e da Filosofia nos vai tornar seres melhores.
A utopia acabou aí?
As utopias acabaram aí e acabaram em 1989. A queda do Muro de Berlim foi o fim das utopias. Não precisamos necessariamente de utopias, mas de horizontes éticos que nos guiem. O século XX mostrou-nos que as soluções de colectivismo tiveram resultados trágicos, à Direita e à Esquerda. A visão das massas levou a uma repressão do indivíduo que foi letal. Por outro lado, também o individualismo excessivo tem efeitos altamente destruidores sobre a sociedade. Precisamos de encontrar equilíbrios, de conseguir acompanhar o que vai sendo a transformação dos nossos tempos, as redes sociais e a forma como mudaram o sentido do humano. Não nos conseguimos pensar sem os nossos gadgets. Não ter telemóvel durante 24 horas altera não só a nossa relação com o real, mas a forma como nos relacionamos connosco próprios. A exclusão gerada pela tecnologia, mesmo por poucas horas, é enorme.
Ela legitima a existência?
No fundo, a questão é saber se temos uma existência além da mediatização. A ausência de pegada mediática torna o indivíduo praticamente invisível. Demonstra uma coisa assustadora: temos uma construção da celebridade individual completamente efémera, mas excessiva, a necessidade constante de se estar a apresentar, a fotografar-se, mostrar-se. Não é o retratar-se — é o mostrar-se.
Parte do seu trabalho como investigadora é indagar o modo como a imagem nos representa e nos faz reagir. Esta é uma fase completamente diferente do relacionamento com a imagem.
Estamos numa fase em que a identidade se subsume no visual, o que é assustador, porque estamos a apagar a dimensão profunda do que é o ser humano e do que é a nossa relação interpessoal. A nossa relação prioritária é com os nossos gadgets e não com as pessoas com quem interagimos. Isso diz muito também sobre o medo; há uma ansiedade enorme na relação face a face. A relação face a face tornou-se uma relação profundamente ansiosa.
É uma relação sem expressão.
E violenta. Basta ver os comentários nos jornais. Há uma violência enorme que circula nas redes sociais, de bolsas da sociedade, é muito usada e manipulada pelos grupos populistas para fazer avançar agendas de exclusão. O medo do migrante, por exemplo.
Inevitável falar de Donald Trump. É um Presidente explicável pelas redes sociais?
As redes sociais também ajudaram Obama. Aliás, a primeira campanha Obama baseou-se muito não só numa monotorização, mas sobretudo numa interacção muito forte com grupos mais jovens nas redes sociais. Ocorre num momento de transmutação das redes de comunicação e de afirmação das redes sociais. A campanha de Trump ocorre numa fase bem diferente. Todos os que trabalhamos na área da literacia visual, da comunicação e das Humanidades não conseguimos construir balizas claras que permitam diferenciar ou afirmar nas redes sociais a distinção entre o verdadeiro e o falso. Tínhamos nos órgãos de comunicação social de qualidade os grandes arautos da versão mais próxima da verdade. É isso que se ensina nas escolas de jornalismo. Com as redes sociais há uma disseminação da autoridade do jornalista, todos podem dar informação, e a veracidade dificilmente é testada. Os mecanismos que os jornais, os media têm para verificar a informação não são utilizados nas redes sociais. A informação está facilmente disponível e o que está em causa é a estrutura de confiança. Qual é a instituição em que se acredita mais? No jornal, no canal de televisão, ou no comentário do blogger x ou y?
O que é que as humanidades podem fazer aqui?
Mostrar que não vale tudo. E as universidades também.
Como?
Na forma como ensinam jornalismo, comunicação, filosofia, história... Sabemos que o conhecimento é social e culturalmente construído, mas também que há factos e esses não podem ser manipulados. Factos e ciência. A interpretação do evento pode considerar diferentes perspectivas mas que o Holocausto aconteceu, aconteceu. É necessário manter uma posição de afirmação ética relativamente aos interesses e poderes que orientam as nossas sociedades. Não podemos prescindir dessa oportunidade de orientar a nossa prática sempre no sentido idealista; mas que esse idealismo não nos faça perder o horizonte ou a forma como olhamos o outro; reconhecer a nossa responsabilidade perante o outro com quem contactamos, que nos interpela, mas também não perder a referencialidade.
Apareceram algumas palavras no último ano, a mais ouvida foi pós-verdade, a possibilidade de várias verdades antagónicas coexistirem. Como interpreta esta pós-verdade?
O conceito da pós-verdade é letal. Significa que há um momento em que o conceito de verdade deixa de ter validade social e temos de nos mover num campo em que qualquer afirmação tem a possibilidade de ser verdade. Tudo vale. Mas não pode ser assim, isso significaria que estamos em 1984, significaria aceitar que estamos no mundo orwelliano e eu recuso-me a pensar nessa possibilidade. No princípio do século XX, um autor austríaco, Hugo von Hofmannsthal, escreveu Uma Carta, que ficaria conhecida como Carta de Lord Chandos, em que dizia que vivia um momento de profundo cepticismo linguístico, sentia que a relação entre a palavra e o seu referente se tinha esboroado; dizia: sinto que as palavras me apodrecem na boca como cogumelos bolorentos. Para Hofmannsthal esta é uma estratégia para poder continuar e para reinventar a linguagem. O perigo de pensar que palavra e o real são o mesmo. Ou a imagem, que também é uma aproximação ao real. Não é o real. É um recorte. Escolhemos aquele enquadramento. A fotografia do sueco Paul Hansen de Fabienne Cherisma — a menina de 15 anos que morreu no terramoto do Haiti [em 2000] — tem um enquadramento belíssimo, a vítima sacrificial, a forma como a cor é tratada, o posicionamento da vítima e, no fundo, a inconsequência daquela morte; uma criança apanhada a roubar objectos de decoração durante a loucura a seguir ao terramoto. Anos depois surge o contra-campo, a fotografia dos fotógrafos em cima da vítima a tirar a melhor imagem. A imagem é uma aproximação ao real. Temos de ter consciência de que o que vemos é uma aproximação, mas de confiar que a instituição dos media é absolutamente essencial.
É reitora de uma universidade, a sua formação é em Humanísticas, a tal área tantas vezes em crise. Como é que os seus colegas das ciências exactas a olham e como legitima esse poder?
Absolutamente sem complexos. Pensa-se que quem vem de Humanidades não tem capacidade na área da numeracia. Isso é uma construção social. Precisamos de três competências essenciais para nos movimentarmos no mundo de hoje: a literaria, a numeracia e a literacia visual, saber lidar com as imagens. Estas competências são essenciais para poder navegar e desenvolver estrategicamente qualquer projecto, seja em que área for. Uma universidade é uma ecologia de saberes e tem de fazer com que os vários sectores não sejam silos. É um grande desafio. O paradigma da ciência moderna é o da especialização, mas aquele em que nos encontramos no século XXI é o da transdisciplinaridade. Estive há pouco tempo na universidade de Quioto, no centro de inteligência artificial que desenvolveu o robô mais perfeito do mundo, Erica. A inteligência artificial é por um lado fascinante, e, por outro, ameaçadora. Causa ansiedade perceber que a máquina está num momento muito próximo daquele que a ficção científica nos apresentou. Quando lemos as histórias de Philip K. Dick pensamos que aquilo é utópico. Já lá estamos.
Uma das coisas que visitei nesse centro foi um projeto financiado por uma grande fundação japonesa. É um projecto a dez anos, chama-se O Que é Um Homem? Lá temos a cibernética, físicos, sociólogos, filósofos, estudiosos de literatura. É sobre a definição do humano e a forma como o avanço da inteligência artificial vai ter um impacto na auto-definição do ser humano. Pode ter implicações dramáticas. Uma das utilizações que está a ser dada a estes robôs é no tratamento dos mais velhos, em lares de terceira idade. O cuidador deixa de ser prioritariamente um ser humano para ser uma máquina. Há estudos face ao impacto e é espantoso ver que os idosos se sentem mais acompanhados com a máquina do que com outros seres humanos. Achei perturbador.
Qual a justificação?
O psicólogo que tinha desenvolvido o estudo disse-me que é por sentirem que os seres humanos, sejam os cuidadores do lar ou a família, são impacientes... Sentir que há maior interacção com uma máquina do que com um ser humano foi atemorizador. Significa um empobrecimento da nossa sociedade, uma alteração radical da forma como pensamos e sentimos a afectividade, que tem um impacto real sobre os nossos corpos e a forma como definimos o humano.
E o que faz uma reitora formada em humanidades numa universidade como a Católica?
Coloca as Humanidades no centro do que são as preocupações de desenvolvimento da estratégia da universidade e da sociedade em geral. E a humanização e os valores éticos associados a esta prática.
O estudo para o desenvolvimento de uma faculdade de Medicina integra-se aí?
Um dos elementos centrais na diferença que queremos fazer ao criar essa faculdade é pôr a humanidade do cuidado no centro do que são as práticas clínicas. A ciência é feita para os seres humanos e não apesar dos seres humanos. E a centralidade do ser humano não aceitar que ele é um predador. Não. Tem de ser cuidador do ambiente para o outro ser humano. Conhecida a doutrina da Igreja relativamente à defesa da vida, isso estará no modelo ético da faculdade. As humanidades são definidoras das sociedades contemporâneas. Temos de desligar esse interesse da vertente mais compreensiva, interpretativa, hermenêutica e crítica daquilo que é uma vocação profissionalizante. As humanidades habilitam qualquer estudante para qualquer cargo.
Está a falar de utilidade?
Outro termo fatal. Nietzsche falava da utilidade da História para a vida. Só conseguimos orientar-nos para o futuro se percebermos como chegámos aqui. É necessário um sentido lato da nossa posição no mundo e não estreito e desconhecedor do que existe além do nosso quintal. A visão hiper-especializada pode levar aí. Seja em que dimensão for, a dimensão da universidade é formar, não é ser um instituto de formação profissional.
Formar foi uma palavra que, entretanto, se perdeu quando aplicada à universidade
Sim. A etimologia é muito importante. Formar significa que há o reconhecimento de um valor simbólico no ensino superior; que, estando formado, pode exercer qualquer iniciativa, actividade. O que interessa é formar bem. Depois adequamos ao que desejamos fazer na vida. Lamento que tenhamos uma formulação do ensino secundário que obrigue o estudante a escolher no 9.º ano opções que são definidoras para a vida. Sobretudo se alguém quer optar por fazer Humanidades e chega ao 12.º e decide que quer ser médico. Tem de voltar atrás. Esse tipo de hiper-especialização com 14 ou 15 anos é destruidor, é o contrário de formar. Precisávamos de ter formação básica em Matemática, em Português, línguas estrangeiras, História e Física, um modelo de ensino secundário com grandes áreas de conhecimento transversais.
Como fez a sua escolha pessoal?
No 9.º ano, adorava Física e Química, mas também Literatura; e gostava muito de Alemão, era excelente aluna a Matemática. Optei pela escolha menos esperada.
E porquê a menos esperada?
Porque acho que temos de arriscar. Nunca deixei de arriscar, com risco controlado, mas sempre arrisquei. O meu pai tinha fortes expectativas que eu enveredasse por Economia. O meu único lamento é não ter feito Física até ao 12.º ano. Os meus amigos físicos dizem que aquilo de que gosto é da Filosofa da Física. E é também, mas há uma parte quantitativa e matemática que gostaria muito de fazer. A escolha [do futuro académico] aos 14 anos é um problema para a sociedade portuguesa.
Sabe falar cinco línguas, cresceu num universo multilingue.
Cresci em Macau. Fui para Macau com sete anos, regressei com 16 anos a Portugal e o momento crítico do desenvolvimento da adolescência foi muito marcado por essa experiência asiática. Em Macau estudei numa escola portuguesa que tinha uma secção portuguesa, uma chinesa e uma inglesa. Eu estava na portuguesa e no recreio juntavam-se a três secções. Quem queria sobreviver tinha de aprender a falar as três línguas. No meu caso, além do português, o cantonense e o inglês. O cantonense foi-se esboroando, nunca aprendi a escrever, ainda sei cantonense de sobrevivência. No Sul da China não morria de fome. Macau trouxe-me essa experiência da multiculturalidade. Não viver num espaço etnicamente homogéneo foi muito importante; sentir a relação de ambivalência, sempre em contacto com a diferença e ser minoria. É muito importante perceber o que é ser minoria.
Foi castrador?
Não. Foi enriquecedor. Sempre fui muito curiosa e gostava de perceber o que não conhecia. Sou filha única mas sou gregária e tenho um interesse enorme pelo que é diferente de mim. Pode até ter uma opinião radicalmente diferente da minha. É um principio básico da interacção humana. [Hannah] Arendt tem um texto sobe os refugiados em que dizia que somos todos refugiados. Escreveu-o em 1942. E tem uma afirmação sobre cultura: cultura significa entender que o outro também pode ter razão. A cultura é algo que define a nossa relação com o outro.
É essa também a sua definição de cultura?
É. Quando falamos em culturas nacionais temos de entender que o que define a cultura portuguesa não é só o que nos exclui dos outros, mas o que nos faz relacionar com os outros.
Somos portugueses na relação com...
Exactamente. Não vivemos em mundos singulares. Portugal tem uma história cultural de relação com o diferente marcada pelo conflito mas também pela interacção; tem uma história de expansão e uma história de emigração. É um caso de estudo. Temos muitas qualidades, elas são muitas vezes citadas e sabidas, mas há uma coisa: a última palavra d’Os Lusíadas é “inveja”.
Ela define-nos?
Não, mas atrapalha muito. Freud falava do narcisismo das pequenas diferenças, essa pequenina rivalidade atrapalha.
Como é a sua relação com a língua portuguesa?
O português era a língua de instrução, era a minha língua nativa, mas sentia que não era a única que me definia. Além do interesse por falar cantonense, inglês, pelos textos literários, o alemão foi a língua que mais me fascinou. Senti que tinha de complementar as minhas competências juntamente com o gosto pela literatura e o alemão fascinava-me — a língua e a literatura alemãs, pelo sentido de incompletude, não só da forma, mas de um contexto literário a fazer-se. E esse sentido de incompletude é de projecto da língua, mas também se passa na afirmação nacional da Alemanha como país.
Qual foi o primeiro autor que a apaixonou em alemão?
Um canónico. Goethe. Mas o meu autor favorito é o austríaco Hugo von Hoffmanstall. Tem um sentido universal, foi disruptivo nalgumas coisas que produziu. Há nele uma curiosidade imensa por práticas artísticas além da textualidade. Ele tenta enquadrar na forma verbal uma plasticidade e uma prática para lá do meramente literário. Tem paixão pelo que chama as artes executadas pelo corpo... A literatura também é. A literatura é um fazer-se. A literatura não é o livro. A literatura é o acto de ler, é o acto performativo da transformação que esse acto de ler tem no próprio leitor e depois na comunidade envolvente. A literatura é muito mais do que um artefacto. É um fazer-se.
Estudou alemão a partir das tragédias da Grécia antiga. Como faz essa relação?
Durante muitos anos houve uma linha de discurso interpretativo que indicava que a formação da literatura alemã se faz a partir de uma imitação dos textos clássicos. Há investigação muito abundante sobre esta relação que forma uma chave referencial para o entendimento da literatura alemã sobretudo na sua versão dramática e lírica.
Qual é a sua obra preferida da Grécia?
A Antígona. Hesitei entre a Medeia. A Medeia é um texto muito interessante para percebermos a contemporaneidade.
É a melhor obra para entender o presente?
Não. [São] As Suplicantes, de Ésquilo. A história das mulheres que partem das bordas da Síria para a Grécia pedindo refúgio ao rei de Argos. Fogem dos primos que as querem obrigar a casar com eles pela força. Elas vão com o seu pai pedir asilo à terra sagrada da Grécia, atravessando o Mediterrâneo. E as hesitações que o rei de Argos tem relativamente àquelas mulheres a fugir da violência dos primos e a integrar-se no modelo cultural que elas rejeitam, são hesitações de ordem cultural e social que reflectem muito do que é o discurso contemporâneo.
Que relação tem com Deus e com o catolicismo?
Sou católica, tenho fé. Há pouco falava das questões que existem e não são mensuráveis: Deus existe e não é mensurável.
É um Deus católico?
É um Deus cristão, no sentido mais lato. Entendo que muita da minha prática como teórica da cultura, no interesse pela diferença do outro, reflecte muito da minha visão religiosa do mundo. Não é centrada em modelos de exclusão, mas de tentar entender de forma inclusiva a diferença. Não é fácil. É o grande desafio, mas se as coisas fossem fáceis eu também não estava aqui. Venho de uma família católica, mas nunca deixei de questionar.
O que questiona mais?
As interpretações. Tentar entender de forma mais profunda aspectos centrais da doutrina. A doutrina-base do cristianismo, amar o outro como a nós próprios, é muito difícil. Às vezes parece impossível. A religião não é um estatuto que se carrega. É uma prática que se discute.
Escolha uma obra literária que sintetize essa relação com o religioso.
Há um texto de uma autora alemã Luise Rinser (1911-2002), Bruder Feuer, sobre S. Francisco de Assis e sobre o desafio na relação com a natureza, o respeito pelo outro através da natureza. É um texto muito simples, mas transformador na sua simplicidade; o sentimento cósmico de irmandade com o mundo.