O massacre nas Ramblas e as lições de 2004
A resposta de Barcelona foi exemplar: “No tinc por” (“Não tenho medo”). As cidades europeias habituam-se a viver sob ameaça de terrorismo, tal como estão expostas ao risco de catástrofes naturais. A diferença é que, enquanto acção humana, o terrorismo significa barbárie, o que impõe o combate contra a fatalidade.
O massacre nas Ramblas está à vista e não precisa de legendas. A Espanha tem, aliás, uma sangrenta experiência. Barcelona não é excepção: foi objecto do maior e mais cruel atentado da ETA, no supermercado Hipercor, em 1987, com 21 mortos e 45 feridos.
A única forma de não capitular é “viver a vida normal” e manter os hábitos culturais. O resto cabe à investigação policial, que na Espanha é competente, e à cooperação europeia no desmantelamento das redes terroristas.
Não há risco zero. Jonathan Evans, antigo responsável pela segurança no MI5 (serviços secretos para o interior), previne os britânicos de que continuarão a afrontar o terrorismo islâmico pelo menos por mais 20 anos.
Antes do terrorismo jihadista, os britânicos confrontaram-se com o do IRA. Madrid foi objecto do maior atentado jihadista na Europa Ocidental, 192 mortos na estação ferroviária de Atocha, em Março de 2004, com a marca da Al-Qaeda. O atentado de Lockerbie de 1998, contra um avião da Pan Am, fez 270 mortos mas pertence à categoria do “terrorismo internacional” patrocinado por Estados, neste caso a Líbia. Foi um outro ciclo, oportunisticamente ligado ao conflito israelo-árabe e manipulado por Estados e seus serviços secretos. Hoje, toda a Europa está confrontada com o “ciclo terrorista” do Estado Islâmico (EI), em boa medida decorrente do “apodrecimento” das primaveras árabes e da anarquia da guerra síria.
O grande risco é a vitória do medo, que provoca uma reacção emotiva de ódio. O EI aposta, por propaganda, em golpear “os infiéis” e os que lhe fazem guerra. Mas visa também provocar a ruptura das comunidades islâmicas com as sociedades em que vivem. Esta estratégia foi particularmente evidente na França, onde encontrava um terreno favorável. Adaptaram, à sua maneira, o clássico princípio dos terrorismos: “Ataque, repressão, reacção”, para polarizar as sociedades e recrutar militantes e “mártires”.
Esta estratégia começou por falhar. Mas obteve um êxito relativo ao favorecer a expansão das ideias xenófobas e islamófilas, fenómeno que já se fez sentir pesadamente na gestão política da crise dos refugiados.
Não repetir 2004
Na Espanha, o risco principal é de natureza política. Vive-se um período de grande tensão, entre Madrid e os idependentistas catalães e dentro do próprio tecido social da Catalunha. Esta crise divide também os dois maiores partidos espanhóis, o Partido Popular (PP) e o PSOE. O massacre nas Ramblas criou um momento de solidariedade em que é obsceno discutir as peripécias da pequena política. Mas incita a olhar o passado e tirar lições.
O passado é o atentado de Atocha em 2004. Na véspera das eleições legislativas em que o PP era favorito, o governo de José Maria Aznar cometeu uma irresponsabilidade histórica. No primeiro momento, havia duas pistas: a da ETA e a islamista, ambas admissíveis em termos lógicos. Ao fim de poucas horas, a polícia identificou o explosivo e os detonadores usados. Não coincidiam com os da ETA, não tinham a sua “impressão dugital”. Mas Aznar persistiu na autoria da ETA até às eleições. Os espanhóis sentiram-se defraudados. O PSOE, de José Luís Zapatero, ganhou as eleições.
Aznar manipulava o atentado. A razão provável era que a “pista islamista” ameaçava ligar o atentado à sua posição na guerra no Iraque. Havia vozes da oposição que denunciavam o risco da participação na guerra poder provocar retaliações islamistas. Depois, uns e outros manipularam Atocha. As consequências morais e políticas foram catastróficas. O preço não foi apenas pago pelo PP, cujo candidato era precisamente Mariano Rajoy.
Anota o jornalista catalão Joan Tapia: “Aquele atentado deixou uma profunda desconfiança — e incompatibilidade — não apenas entre os dois grandes partidos mas também entre as próprias associações das vítimas, envenenando o primeiro mandato de Zapatero.” Pior ainda: alargou a desconfiança em relação às instituições políticas e aumentou o descrédito dos partidos.
Outro jornalista catalão, Lluís Bassets, director-adjunto El País, escrevia ontem sobre a necessidade de manter os meios e a independência da polícia catalã, os Mossos d’Esquadra, evitando que seja envolvida na querela do referendo e da independência. É uma crítica implícita ao governo catalão. Mas conclui com uma pergunta fulcral: “Deixaremos que os terroristas interfiram e condicionem o debate sobre Barcelona, sobre a sua segurança e o seu turismo?”
Discutir os eventuais efeitos do atentado sobre o processo independentista pertence ao domínio da especulação. O momento terrorista deve ser separado do momento do debate político. Quem manipular de os mortos das Ramblas pagará um preço alto pelo oportunismo e assumirá a responsabilidade de envenenar, ainda mais, a já tóxica paisagem política catalã.
Na manifestação de dor e indignação de Barcelona também se ouviu outro grito “No hay bandreas, no hay banderas”.