Sua Santidade, o Governo
Antes de produzir declarações majestáticas sobre os supostos consensos nacionais em torno de “tragédias como as dos incêndios” para criticar a oposição, o primeiro-ministro devia fazer uma busca no Google. Se o tivesse feito teria evitado esse campo minado pela demagogia que se abre sempre que um líder político se quer fazer passar por santinho. Porque a verdade é que o PS da oposição (e ainda mais o fervoroso Bloco) fez sempre exactamente a mesma coisa que o PSD e o CDS fazem agora em torno dos incêndios: exploram as feridas abertas pela tragédia para desgastar quem manda. Foi precisamente o que fez o actual secretário de Estado das Florestas e então deputado do PS, Miguel Freitas, em Novembro de 2013, quando acusou Governo de Passos Coelho de se “tentar desresponsabilizar” pela falta de uma “estratégia integrada” no combate aos fogos desse Verão que provocaram a morte de nove pessoas e a maior destruição da floresta nacional desde 2005. Foi também o que fizeram o Bloco e o PCP sempre que os relatos dos incêndios subiam de tom e colocavam, como agora, o país em estado de alarme.
Nós percebemos que haja em todo este clima de denúncias da oposição um certo ar de necrotério e na sua estratégia um certo voo de abutre. Nós conseguimos entender as razões que levam tantos militantes do Governo a criticar as televisões pelos direitos dos fogos ou pelo tempo de antena que lhes concedem. Mas era o que faltava que num país democrático que vive um dos seus momentos mais dramáticos em anos se limitasse a cantar em coro a partitura do Governo. António Costa tenta santificar a sua missão e demonizar a da oposição precisamente porque a revelação de sucessivas falhas no combate aos incêndios o incomodam, estragam o seu sucesso na frente económica e obrigam-no a medir a popularidade em “focus group”. Exigir que essas falhas sejam reveladas (como o fez exemplarmente esta semana a ministra da Administração Interna) e discutidas é essencial para escrutinar o Governo e, principalmente, para se exigir a reparação de erros no futuro.
Pedir silêncio quando o Estado falha e o país arde é um absurdo a menos que tenha uma finalidade sub-reptícia: dar argumentos às hostes que defendem com unhas e dentes o Governo. Ou seja, de criar uma narrativa. Já sabemos como isso funciona. É munir os sapadores políticos dos partidos da coligação com uma cartilha: não se pode falar dos erros no combate aos incêndios; não se deve pedir a demissão da ministra; o Governo virou mesmo a “página da austeridade” porque é uma estrela que veio do firmamento para nos salvar da troika; a união de facto entre os partidos da esquerda é uma maravilha da política contemporânea celebrada pelo mundo fora e só rejeitada entre portas por causa da proverbial estupidez e inveja dos indígenas.
Durante anos, Portugal viveu debaixo de um impiedoso diktat do pensamento da direita neoliberal produzido em centros universitários como o Instituto de Ciências Sociais e disseminado por uma rede eficaz de jornalistas e colunistas. Hoje Portugal começa a viver debaixo de uma impiedosa rede de vigilância montada pelos intelectuais do Bloco, pelos apparatchiks do PCP e pela intelligentsia socialista que se investiu da missão de purgar as mentalidades dos perigos desviantes. Só se pode falar do Governo e das suas políticas com perfume de incenso e mãos juntas em jeito de oração. Pouco a pouco, foram sendo criados os códigos, as palavras e as frases que podemos dizer e citadas as questões da actualidade que podemos criticar. Quem não o fizer quebra consensos ou faz fretes a obscuras forças nacionais ou estrangeiras. Ou se é a favor do Governo, ou se é “pafiano” ou “troikiano” ou, como agora, entra no “aproveitamento político de tragédias” que estrafega os “consensos nacionais”.
Desta vez, não é preciso haver um Armando Vara e um José Sócrates a pensarem em planos sórdidos de controlo dos jornais e dos jornalistas para que a luta por um novo pensamento único ganhe fulgor. Com a direita ultraliberal resignada e ressentida com um mundo que tolera a existência de um Governo socialista capaz de cumprir o défice, basta uma dúzia de colunistas de varapau, e, principalmente, uma rede de detectores de falhas da imprensa para que os desvios sejam rapidamente identificados e denunciados. É aí que um erro ou uma omissão dos jornalistas se transformam numa conspiração planeada nos segredos dos bastidores por forças poderosas que ameaçam a “sua” democracia. O que os move não é a saudável exigência por uma imprensa escrutinada, forçada a ser mais exigente, mais crítica e mais servidora do interesse público: é antes a criação de uma suspeita genérica sobre a sua legitimidade. Se há críticas ao Governo ou elogios ao CDS não é por causa do pluralismo: só pode ser por causa de um plano subversivo das forças do mal. Um jornal sarcástico e comprometido como “O Independente” seria, nestes dias, um crime.
Neste campo minado, a direita enterra-se todos os dias. Porque a sua doutrina, as suas fragilidades e os seus erros são presas fáceis para os lobbies da esquerda indiscutível que vai de Pedro Nuno Santos a Francisco Louçã. Porque é incompetente. E porque caiu na tentação de ser do contra por sistema. Quando numa crise tão grave como a actual o CDS e o PSD se limitam a criticar sem serem capazes de produzir uma única ideia, uma só proposta, está quase tudo dito sobre a sua moral para pedir contas. O caso extremo desta política “partisan” aconteceu com a reforma da Floresta, da qual os dois partidos do centro-direita se retiraram para entregar o PS às exigências disparatadas do Bloco de Esquerda. Por culpas próprias e eficiências alheias, o que começa a ser evidente não é apenas a demolição da liderança de Passos ou de Assunção Cristas; é também a própria leitura do passado recente que está a ser reescrita. Não se pode dizer que em 2010 Portugal estava no limiar da bancarrota ou que a austeridade nos foi imposta porque para os novos donos das palavras isso é ou mentira ou submissão ao jogo da direita, do FMI, de Bruxelas ou do capital.
Esta onda que tende a seguir os velhos trilhos dos populismos e das ditaduras, quase sempre iniciados com a apropriação das palavras e a generalização da maldade das “forças de bloqueio”, seja a oposição ou os jornalistas, vem de longe. Mas a militância apaixonada da extrema-esquerda e o poder das redes sociais tornam-na mais forte. Portugal é felizmente uma democracia consistente onde ainda se respira bem. Mas para percebermos onde estamos, é bom apontar o dedo aos que o apontam a cada passo a todos os que falam ou pensam de forma diferente.