Em dez anos, consumo de estatinas mais do que duplicou em Portugal

Mortalidade por doenças cardiovasculares diminuiu de forma impressiva, notam especialistas. Polémica do colesterol e das estatinas já valeu a Manuel Pinto Coelho várias queixas na Ordem dos Médicos

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JGS JOAO GUILHERME

Na última década, o consumo de estatinas mais do que duplicou em Portugal. No ano passado, os portugueses compraram mais de 9,2 milhões de embalagens destes medicamentos e gastaram mais de 72 milhões de euros, tendo o Estado ainda comparticipado com quase 41 milhões de euros, indicam os dados adiantados pela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed).

Antes disso, a utilização destes medicamentos já tinha tido um crescimento quase exponencial, à semelhança do que aconteceu em muitos países ocidentais. Mas ainda haverá um potencial de crescimento. Quando o Infarmed fez, há quatro anos, o último estudo detalhado e comparativo sobre este tema (e que abrangeu o período compreendido entre 2000 e 2013) enfatizou que Portugal apresentava então níveis de utilização de antidislipidémicos similares aos de Espanha e França, mas inferiores aos dos países nórdicos ou do Reino Unido. 

Curiosamente, nessa altura -   e em comparação com Espanha, Itália, Inglaterra, Dinamarca, Holanda e Alemanha -,  Portugal era dos países que apresentava maior utilização de rosuvastatina (Crestor, nome comercial), uma das várias estatinas disponíveis no mercado, mas que, ao contrário de outras, não tinha genéricos, ficando assim muito mais cara para os doentes. A despesa diminuiu entretanto, graças à entrada de genéricos e à diminuição dos preços dos medicamentos.

O aumento da utilização de estatinas é um “resultado importante na estratégia de prevenção das doenças cardiovasculares”,  concluíam as peritas do Infarmed no estudo, admitindo que, apesar do crescimento, poderá ainda existir um potencial de aumento de utilização,  uma vez que “os níveis de utilização são ainda inferiores aos de alguns países europeus”. 

Desde 2011 os médicos têm uma norma de orientação clínica que define regras sobre a  abordagem terapêutica de dislipidemias no adulto. Elaborada pela  Direcção-Geral da Saúde, com a colaboração de vários especialistas, esta norma que já foi alvo de várias actualizações, chama a atenção para a importância da promoção de “intervenções no estilo de vida” adequadas a cada doente e que passam pela adopção de uma dieta variada e equilibrada, a prática de exercício físico (30 a 60 minutos, quatro a sete dias por semana), controlo de peso, restrição do consumo de álcool e de sal e por deixar de fumar. Mas sublinham que, nas pessoas com risco cardiovascular baixo e moderado que não alcancem os objectivos terapêuticos com intervenções no estilo de vida, justifica-se a introdução de tratamento farmacológico, e que, nos casos de risco cardiovascular alto ou muito alto, as doses devem ser aumentadas.

Polémica chegou a Portugal 

Portugal acordou para polémica sobre o colesterol e o uso de estatinas com um artigo de opinião que o médico Manuel Pinto Coelho, que nos últimos anos se tem dedicado ao “anti-envelhecimento”, assinou no PÚBLICO em 2015. Este ano, a polémica teve um reacendimento com uma entrevista que o médico deu ao Expresso e em que regressava ao  tema e acrescentava outros igualmente controversos, como o apelo a que as pessoas não usem protector no início da exposição solar e a que bebam água do mar diluída . Mas a exibição de um documentário, na RTP, intitulado “Colesterol: a grande farsa”, em 17 de Julho passsado, e em que especialistas de vários países elencam argumentos contra o uso das estatinas, contribuiu para dar um novo alento a este debate.

Sublinhando que o assunto "é muito complexo e que a discussão tem sido extremamente superficial", até porque a doença cardiovascular é complexa e multifactorial,  António Vaz Carneiro, que dirige o Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa, nota que os “negacionistas” da importância das estatinas vão "buscar dados excepcionais" para sustentar os seus argumentos, enquanto frisa que os efeitos secundários destes medicamentos estão "perfeitamente estudados e quantificados".

Apesar de admitir que possa haver casos de sobretratamento (sobretudo em pessoas de mais de 75 anos), Vaz Carneiro nota que a mortalidade devido a doenças cardiovasculares tem vindo a diminuir de forma impressiva em Portugal (as doenças do aparelho circulatório representam agora menos de 30% do total de óbitos). E isto resulta em grande parte do tratamento de factores de risco major, “o resto é conversa fiada”, diz. O problema, lamenta, “é que é as pessoas acreditam em coisas cada vez mais extraordinárias, numa espécie de pensamento mágico”.

Pinto Coelho alvo de sete queixas 

Manuel Pinto Coelho, que se recusou a falar ao PÚBLICO argumentando que a direcção do jornal recusou publicar outro artigo de opinião em que voltava  a pôr em causa o papel das estatinas, foi entretanto alvo de uma participação ao Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos (OM). O médico tem, aliás, dado algum trabalho a este órgão da Ordem. Segundo os dados fornecidos pela OM, foram-lhe instaurados processos disciplinares em 1993, em 1994, em 2006 e, em 2007, foi mesmo alvo de três queixas. Mas apenas uma destas últimas terá dado origem a uma pena e, mesmo esta, leve – uma repreensão. A OM não especificou os motivos que determinaram os processos.

Em 2015, o anterior bastonário José Manuel Silva queixou-se de Pinto Coelho por causa do polémico artigo publicado nesse ano, processo esse que terá sido arquivado. Agora, o médico tem mais um inquérito, não só por causa da entrevista ao Expresso, mas também por causa de declarações proferidas numa estação de televisão. Para o actual bastonário Miguel Guimarães, que fez questão de encaminhar as participações para o Conselho Disciplinar depois de ter recebido queixas de “mais de 300 médicos”, é inaceitável que ele tenha produzido "afirmações sem evidência científica e que podem pôr em risco a saúde pública". 

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