Transparências, olhares e cartões da História
A História não tem sentinelas nem guardiões, apenas observadores críticos.
Na mais célebre telenovela brasileira exibida em Portugal, figurava um personagem singular, o dr. Argileu Palmeira, cuja marca distintiva era a declaração pronta e inevitável, quando interagia com alguém, de um “já lhe dei o meu cartão?”. No dito podia ler-se, entre outros méritos, um impressivo “autor de seis livros consagrados pela crítica”. Lembrei-me do dr. Argileu Palmeira ao ler as crónicas que João Pedro Marques (JPM) publicou desde abril passado. A mais recente é uma alegada réplica ao que escrevi no PÚBLICO dois dias antes. Diz, entre outras coisas, que lhe “dediquei um texto crítico” e que é minha intenção “arrancar a conversa do campo da História e arrastá-la para o campo desprotegido da memória”. São ambas incorretas: contestei JPM num parágrafo porque é a voz que mais tem insistido num certo argumentário e não “arranquei” nem “arrastei” “conversa” nenhuma; o máximo que posso ter feito é tê-la criado, porque até esse momento, tanto quanto percebi, não passava de um monólogo. Confirmei, sim, que, ao fim de seis crónicas mais ou menos redundantes, JPM continua atolado a lançar dúvidas sobre a credibilidade dos que dele discordam e a escorar as suas posições na aspersão repetida do mesmo repelente para afastar esses mosquitos incómodos: os livros que escreveu, os artigos que publicou na imprensa, o tempo que dedicou ao estudo e, recentemente, os milhares de leitores que terão lido o seu romance histórico. Sim, JPM já nos deu o seu cartão.
A História é, certamente, a mais singular das ciências sociais (ou humanidades, se se preferir). Mais do que por qualquer outro traço ímpar — e vários se lhe podem apontar, a começar pela contradição entre a sua aparente inutilidade prática e a sua permanente evocação —, esta singularidade decorre do facto de se debruçar sobre um objeto ausente. A História estuda o passado, e o passado desapareceu. Já não existe. Não pode ser recriado, repetido, ensaiado ou testado. A História não passa de uma aproximação imperfeita e lacunar, de um conhecimento construído a partir do que resta desse passado. Há muito que se perceberam as limitações desses restos — as fontes históricas — e desde o século passado que se debatem as condicionantes de quem os interpreta e estuda, ou seja, os historiadores. Numa palavra, não só não há fontes “transparentes” como também não existem historiadores “isentos”, porque a cada um corresponde um determinado olhar, uma certa perspetiva, um dado discurso. É por isso que o conhecimento histórico evolui cumulativamente e que a História de hoje difere da que se fazia no tempo de Alexandre Herculano ou de Fustel de Coulanges.
A estas limitações e “filtros” que moldam a nossa visão da História juntam-se as idiossincrasias da memória coletiva, as imagens identitárias que cada povo constrói do seu próprio passado e do passado alheio. As apreciações de JPM sobre História, memória e verdade, isolando-as em compartimentos estanques, não passam de simplificações grosseiras. Um historiador deve ter — se não tem, é grave — consciência das limitações do seu olhar sobre o passado, porque este não escapa à lente deformadora das preocupações e tensões do seu próprio tempo. Isto não tem nada a ver com “isenção” ou com “coisa séria”, com “comícios” ou com “demagogia barata” que, segundo JPM, separam a História da memória. Dizer que a História “serve para dizer aos cidadãos o que é verdade e o que é mentira” é cair na falácia de pensar — ou de tentar fazer crer — que o passado é um tubo de ensaio de vidro transparente ao historiador, que revela o seu conteúdo “a quem quiser saber”. A História não tem sentinelas nem guardiões, apenas observadores críticos.
JPM talvez não aceite as minhas posições — uma vez que, segundo o seu juízo, serei mais adepto de comícios, não sou um especialista nesta área nem no século XIX, nunca escrevi sobre este assunto e desagrada-me chamar a História para debates sobre factos do passado —, mas talvez Jacques Le Goff e o seu Memória e História possua um patamar de autoridade que eu inegavelmente não atinjo. E, de caminho, quem sabe se a leitura de Marc Ferro e do seu Comment on raconte l’Histoire aux enfants (traduzido com o péssimo título de “Falsificações da História”, quando o correto seria “Como é contada a História às crianças”) dê algumas pistas sobre os mecanismos de truncagem da memória coletiva e a cristalização e replicação dos preconceitos identitários. Em particular, talvez ajude a responder à pergunta do “para que serve o debate” que proponho — eu e outros — sobre passado colonial e memória coletiva. Apenas servirá para “substituir uma mitologia por outra”, como diz JPM? Creio firmemente no inverso, ou seja, que servirá para revisitar todo o rol de ideias-feitas e estereótipos sobre a nossa história colonial/ultramarina, conhecer as ligações adormecidas entre o passado e o presente e compreender melhor a nossa relação complexa — de ontem e de hoje — com africanos, asiáticos e americanos. Algo que, diga-se, só peca por tardio.