Sevdaliza: a cantora que perdeu o controlo na Ponta do Sol
Uma das revelações do ano, a cantora iraniana-holandesa, que lançou o álbum Ison, estreou-se em Portugal, na Ponta do Sol, onde descobriu que não deter o controlo total das situações pode ser uma aprendizagem.
Devido às condições meterológicas inúmeros voos foram cancelados a partir da Madeira nos últimos dias. A iraniana-holandesa Sevda Alizadeth, mais conhecida por “Sevdaliza”, 28 anos, uma das revelações musicais dos últimos meses com uma pop electrónica futurista e melancólica, algures entre Portishead e FKA Twigs, exposta no álbum Ison, foi uma das visitantes da ilha a sofrer transtornos por causa da situação. Mas quando a encontramos no hall da Estalagem da Ponta do Sol, na localidade do mesmo nome, um dia depois de ali ter actuado, naquela que foi a sua estreia em Portugal, não vislumbramos qualquer preocupação no seu rosto.
Na véspera, em conversa, havia-nos dito que durante anos sofrera de ansiedade e tinha ataques de pânico em situações que não conseguia controlar. Agora ali parecia totalmente descontraída, apesar de a sua banda ter visto o voo ser adiado nesse mesmo dia e de ela própria não saber quando iria sair da Madeira. “Há cinco anos que não tenho férias e nestes últimos dias tenho feito ioga e meditação, ao mesmo tempo que tenho aproveitado para estar em contacto com a natureza neste local fantástico. Portanto, toda esta situação pode bem ser um sinal do meu corpo a dizer-me que, finalmente, tenho de descansar depois de cinco anos sem férias.”
Enquanto fala, ri-se, despreocupada, mas um dia antes havia-se descrito de forma diferente. “Sou autocontrolada e muito disciplinada”, afirmou. E de seguida: “Mas estou a tentar não o ser tanto. Estou a aprender a deixar-me ir, a perder o controlo sobre mim própria. E a música tem sido importante, uma aprendizagem sobre regiões de mim própria que estavam mais adormecidas.” “Sevda”, como todos à sua volta a tratam, nasceu no Irão. Quando tinha 5 anos, os pais, refugiados políticos, resolveram ir viver para a Holanda. Aos 16 anos, em Roterdão, foi habitar sozinha, na mesma altura em que era desportista de alta competição como basquetebolista, tendo até chegado à selecção holandesa, acabando mais tarde por cursar Comunicação.
É uma poliglota, arranhando o português, por via do convívio com a vasta comunidade cabo-verdiana em Roterdão – sendo essa a origem do bailarino que a acompanha em palco. Esteve duas vezes em Lisboa. Chegou a estar em estúdio com Branko (Buraka Som Sistema). A Madeira é uma estreia. “O sol na pele, o cheiro das árvores, o mar, hoje nadei quase duas horas, é incrível.” Desde nova que se habituou a tomar conta de si própria e viajar foi importante. “Quando pratiquei alta competição, viajei muito e isso disciplinou-me, talvez até demasiado, porque se está sempre em competição, forçando-nos a dar mais e mais, o que pode ser nocivo. Nos últimos anos tenho tentado equilibrar isso com outras dimensões da vida, a partilha, o saber olhar para mim e para os outros.” Uma das áreas em que continua intransigente é na música. “A última palavra é sempre minha”, proclama. Canta, compõe, imagina imagens, produz, mas nesta última função conta com um aliado. O músico-produtor Mucky, holandês com longo percurso em linguagens urbanas como o grime ou o dubstep.
Ison é magnífico. Ritmos electrónicos contorcidos, robóticos e industrializados em câmara lenta, combinando com sons clássicos de piano e orquestrações envolventes, com a voz dela, sedosa ou crua, intensa ou alterada digitalmente, a pairar. O ritmo é meticuloso e a electrónica minimal com delicadas inflexões pelo jazz, soul e R&B. Imagina-se uma combinação entre o pós-hip-hop dos anos 1990 (Portishead, Massive Attack) e o R&B mais livre dos últimos anos (FKA Twigs ou Kelela), embora também se possa pensar numa aliança entre Sade e James Blake. No fim de contas são canções que combinam disciplina e experimentação, ambientes negros e clarões de luz, melancolia com sensualidade, um lado masculino imperial e uma vulnerabilidade feminina. Ou tudo isto invertido, porque com Sevdaliza não existem categorias que repousem sobre um plano fixo.
Prazer e medo
Quem quiser ouvir o álbum poderá fazê-lo no YouTube. É que Sevdaliza resolveu colocá-lo aí na íntegra, acabando por fazer um álbum visual com a colaboração da artista visual Sarah Sitkin. “Pareceu-me que seria interessante criar uma experiência visual e partilhá-la no YouTube como uma única peça. De qualquer forma as pessoas vão descarregar o álbum, então por que não apresentá-lo da maneira que desejo? Eu sei que soa estranho dizê-lo, mas nunca pensei em dinheiro quando comecei isto. Tenho, aliás, uma relação estúpida com o dinheiro. Quero ter algum, claro, para garantir que continuo a fazer aquilo de que gosto, mas acima de tudo quero ser criativa. É esse o meu pacto. E nesse sentido percebi que em 2017 não valia a pena ter a música fechada a sete chaves, até porque isso não existe verdadeiramente.”
Para além do álbum, tem sido através dos videoclips e dos espectáculos ao vivo que tem causado sensação. Foi isso que se viu na Estalagem da Ponta do Sol, nos Concertos L, que decorrem todos os anos entre Julho e Setembro, organizados pela unidade hoteleira, que continua a fazer trabalho de relevância cultural sem apoios (até ao final de Setembro ainda será possível ver a inglesa Anna Meredith, os suecos Wildbirds & Peacedrums ou portugueses como Sérgio Godinho & Filipe Raposo, Carlos Bica, Best Youth, Cristina Branco ou Senõritas). No último sábado, 600 pessoas voltaram a encher o magnífico espaço do jardim da estalagem, a 80 metros de altura do centro da vila, com o vasto oceano em fundo, para assistir à estreia em terras lusas de Sevdaliza num concerto excelente.
Acompanhada por baterista, teclista e programador e um bailarino que vai interagindo com ela, Sevdaliza apresenta um espectáculo hipnótico, com gestos teatrais, voz voluptuosa, baixos subsónicos e batidas lentas e claustrofóbicas desenhando um cenário de formas fluidas e erotismo negro, em que por vezes prazer e dor se confundem. O microfone é um arranjo floral que ela própria concebeu, o ritmo da bateria é marcado, os teclados acentuam o carácter estilizado da música e a cantora, de sensual vestido comprido, e o felino bailarino entregam-se a um ritual em que o rigor dos movimentos, como a própria mecânica da música, parece estar sempre à beira da deflagração. Por vezes, gera-se o quase silêncio para logo de seguida o som compassado e uma voz que parece suspender os sentidos se entrelaçarem com vigor.
No final o público queria mais, convicto de que oportunidades como aquela de a ter num espaço tão intimista não deverão repetir-se. Mas Sevdaliza optou por não ceder. Haveria de dizer-nos que os encores lhe parecem uma situação artificial com a qual não se sente à vontade. Perguntamos-lhe se tem receio de perder o controlo da performance. Ri-se. “Ganham-se e perdem-se espectáculos nos encores, mas não tem que ver com isso. Sinto apenas que é algo pouco orgânico. Actuar ao vivo consome energia. Corpo, mente, alma. Tem sido um desafio entender-me melhor para poder estar todos os dias disponível para o tipo de espectáculo que aqui apresentei. Nem sempre é fácil. A minha abordagem do palco é intensa e tenho-me espantado por gostar tanto da experiência.” De onde vem a surpresa? “Às vezes existe um misto de prazer e de medo envolvido, mas no geral tenho sentido mais prazer e isso, de início, não era evidente. Quando me sinto preparada – no sentido fisíco e mental –, é óptimo poder assumir todas as consequências do que acontecer em palco, mas no passado ficava demasiado ansiosa.”
Nos artigos que foram escritos sobre ela surge invariavelmente como enigmática ou misteriosa, mas nas canções, nos vídeos e em palco expõe-se até bastante, o que parece padadoxal. “É sempre interessante ver a forma como as pessoas nos percebem, embora eu não me veja de forma nenhuma como misteriosa, nem sequer tento investir nesse tipo de conceito em termos artísticos, embora aceite que me possam olhar dessa forma.” Mais à frente confessará: “Nem sempre sei o que sou, ou o que acabo por passar aos outros artisticamente, mas sei que sou sempre sincera e espero ser percebida dessa forma. Isso é o mais importante.”
Dir-se-ia que existe o cuidado de representar uma certa verdade. Preocupa-a a imagem socialmente construída nas redes sociais. “Quando a nossa imagem online começa a ser mais importante do que a nossa identidade, offline é preocupante.” Quer que se perceba que Ison é o seu universo, mesmo se teve ajuda na concretização. “Monotorizo tudo deste o início, o conceito, os detalhes, o som, a mistura, a escrita, mas estou sempre disposta a aprender. Com Mucky foi assim. Ao mesmo tempo que estava a aprender a produzir e a misturar, estava realmente a fazê-lo. Foi intenso e desgastante, mas quando cheguei ao fim senti-me realizada, porque agora posso ir para estúdio e sentir-me confiante no processo. Sei que não tenho a técnica de quem o faz há 15 anos, mas também sei que é fácil trabalhar comigo, porque sei o que quero e não se trata apenas dos sons ou dos ritmos, mas também do design sonoro total e dos detalhes. O Mucky gosta muito de trabalhar o som do baixo e bateria e eu de trabalhar as vozes, texturas e melodias. É muito feminino-masculino e é especial o que nos une.”
Mas não é apenas na música que o envolvimento é total. O mesmo sucede com os vídeos ou as imagens em geral. “Nesses casos, na maior parte das vezes, tenho uma ideia e vou ter com alguém que a saiba executar. No início era difícil. Não me conheciam. Tive de lutar. Mas agora é diferente.” Há três meses fez uma sessão de fotografias com a mãe, porque lhe interessava trabalhar o conceito de maternidade presente na canção Hero, tendo recorrido ao fotógrafo Zahra Reijs. “Mais uma vez o que me interessou aí foi jogar com essa dualidade entre o controlo da vida e aquilo que não podemos controlar – não sabemos como irão ser os nossos filhos. A única coisa que podemos fazer é sermos pessoas de corpo inteiro e esperar que os nosso filhos beneficiem disso mesmo.”
Nos vídeos a estratégia é a mesma. Concebe uma ideia e tenta encontrar alguém que a consiga traduzir. Em Amandine insensible representa várias mulheres para colocar em causa as expectativas limitadas acerca dos seus papéis sociais. Solitária é no trabalho com as palavras. “Os meus amigos dizem que tenho dotes de magia com elas, é como se viessem ter comigo. Muito antes de cantar já escrevia regularmente qualquer coisa parecida com canções. Tenho, aliás, um livro de apontamentos desde 2010 e agora todos os dias existe qualquer coisa a acresentar nele.” Curiosamente, mais do que escritores ou poetas, diz-se mais influenciada por artes das imagens. “É dessa forma que concebo o que escrevo, como algo muito visual”, afirma, enunciando artistas como George Condo, ilustradores como Moebius, a fotografia do amigo Alexander Shaw ou o cinema de David Lynch como algumas dessas referências.
Musicalmente diz que foi apenas desde que lhe começaram a falar de Portishead ou de Bjork que os descobriu. “Acredita que apenas ouvi o álbum Homogenic de Björk há três anos? Fiquei petrificada. O que é engraçado é que nem eu, ou Mucky ouvimos trip-hop. Foi depois de nos falarem que fui ouvir Portishead, Massive Attack ou Tricky – um doido completo de quem entretanto fiquei amiga”, afirma entre risos. “E gostei bastante do que ouvi, apesar de as minhas referências serem música árabe, R&B e grunge e as de Mucky serem dub ou grime. Enfim, mas é a combinação de todos esses elementos que acaba por originar este estranho som que fazemos. Se virmos bem, todos esses sons acabam por ter uma raiz na cultura britânica dos sound systems. É daí que vem tudo. Menos algumas das harmonias arábes.”
O facto de ter nascido em Teerão é naturalmente uma questão sempre referida quando se fala de Sevdaliza, embora diga não ter problemas identitários. “Sou uma mistura de todas essas coisas, europeias, árabes, holandesas ou iranianas. Não sinto que tenha de escolher. A minha ética de trabalho é europeia e focada. Mas, quando me exprimo vocalmente, sinto que existem uma série de microtonalidades que vêm das minhas raízes e não preciso de ter muita consciência disso. Acontece apenas. Durante anos não era capaz de aceitar essa mistura. Agora aceito-o. Não passo o tempo a pensar se sou isto ou aquilo.” É verdade, mas estão constantemente a confrontá-la. Há até uma canção em que reflecte sobre isso, Bebin, composta depois de ter percebido que poderia ser uma das vítimas das “políticas raciais de exclusão” que Donald Trump quis lançar. “Numa época de muros, em que toda a gente parece procurar o que nos diferencia enquanto seres humanos, parece-me mais relevante lembrar os que nos une e que é muito”, reflecte, dizendo que pessoas como ela, tanto europeias como árabes, têm a possibilidade de criar essas pontes. “É preciso unir, não separar.”
Dois dias depois, e após mais alguns adiamentos de voos, fomos encontrá-la na biblioteca da Estalagem da Ponta do Sol. Aí já não estava tão descontraída. “Não resisti, estou a trabalhar numa canção nova”, diz-nos, sorrindo, de computador aberto, como se tivesse sido apanhada a fazer algo que não devia. “É óptimo estar aqui sem fazer nada, mas tenho de voltar a trabalhar”, justifica. E lança de seguida: “Mas estou a aprender a não ser tão obsessiva com o trabalho e a deixar-me ir.” A Madeira foi até um bom começo, acaba por confessar, rindo-se. “Perdi o avião, perdi o controlo da situação, mas encontrei aqui na Madeira uma nova casa espiritual. Nada mau."