Esquerda parlamentar refugia-se nas recomendações e propõe menos leis

Nesta segunda sessão legislativa, os partidos de esquerda refugiaram-se mais em projectos de resolução do que em projectos de lei e o Governo quadruplicou as propostas de lei — mas ainda longe dos dois primeiros anos de Passos Coelho.

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O PS esteve sempre atrás de BE e PCP no número de diplomas propostos Nuno Ferreira Santos (arquivo)

No último ano, os partidos de esquerda que apoiam o Governo refugiaram-se numa atitude de “activismo parlamentar soft”, aumentando o número de projectos de resolução, que são meras recomendações ao Executivo de António Costa, e reduzindo o número de projectos de lei que entregaram. Neste último caso, a única excepção foi o PEV, que aumentou em 30% os seus projectos.

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Feitas as contas, na primeira sessão legislativa de Costa a esquerda apresentou 220 projectos de lei e 300 projectos de resolução, mas nesta segunda foram apenas 187 diplomas com força de lei e passou para 344 recomendações — com o PS sempre atrás de BE e PCP no ranking do número de diplomas propostos. A direita seguiu a mesma tendência: PSD e CDS quase duplicaram os projectos de lei (de 55 para 98) e as resoluções aumentaram de 125 para 176. À esquerda, foi o Bloco quem teve mais resoluções e projectos de lei aprovados.

Para o politólogo António Costa Pinto, o maior recurso da esquerda às recomendações ao Governo é um “modelo soft de activismo parlamentar”: funciona para o Bloco, o PCP e o PEV como uma “demarcação” de algumas políticas e atitudes do Governo, mas não o penaliza em excesso nem o coloca sistematicamente à prova no Parlamento. O investigador do Instituto de Ciências Sociais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) diz que é natural que, tendo em conta os acordos parlamentares à esquerda, “o Governo dê mais atenção a estas recomendações” e as incorpore na sua actividade legislativa.

Já quanto aos partidos parceiros, o facto de apresentarem recomendações pode sempre ser usado “eleitoral e politicamente”, em especial em ano de eleições como este — “‘Nós propomos mas o Governo é que não faz...’, dirão aos seus apoiantes”, vinca Costa Pinto. Também o politólogo André Freire, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do mesmo instituto, considera que os projectos de resolução funcionam como a “sinalização do papel de cada partido” na maioria de esquerda mas também no Parlamento.

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Governo despertou

Olhando para as estatísticas das iniciativas legislativas parlamentares, percebe-se também que o Governo multiplicou por quatro a sua actividade legislativa do primeiro para o segundo ano desta legislatura: depois de entregar apenas 14 propostas de lei em 2015/16, passou nesta sessão legislativa para 62. E, no conjunto das duas sessões, aprovou 62, tendo apenas duas sido rejeitadas — a primeira foi o Código Cooperativo, que baixou sem votação por os socialistas terem percebido que não tinham apoio à esquerda e depois procuraram-no no PSD, para fazerem um texto de substituição; a segunda foi o banco de terras, com o PCP a juntar-se à direita para o chumbar.

Nestes dois primeiros anos, António Costa esteve, ainda assim, bem longe do poder de iniciativa de Pedro Passos Coelho, que levou ao Parlamento, nas suas duas primeiras sessões legislativas, 149 propostas — e teve 140 aprovadas. A diferença explica-se, por um lado, pelo facto de Passos Coelho ter que legislar para cumprir as principais obrigações do memorando da troika nesses dois anos, e, por outro, porque António Costa preferiu uma filosofia menos legisladora — os conselhos de ministros já não são todos deliberativos — e porque deixou essa tarefa para os partidos que o apoiam no Parlamento, que no ano passado se juntaram para ali reverter uma série de medidas da direita — foi o caso dos feriados, dos cortes salariais da função pública, do adicional ao IRS, das mudanças na interrupção voluntária da gravidez ou da adopção plena.

Mas haverá aqui também razões políticas, acrescenta André Freire. Com esta solução de esquerda, “esperava-se que o Parlamento tivesse mais centralidade na decisão legislativa”, como realmente aconteceu no primeiro ano. O crescimento das propostas do Governo este ano pode significar que “há maior articulação entre os partidos que o sustentam e maior delegação destes no Executivo”. Além disso, o politólogo lembra que “quando um Governo chega de novo, ainda não tem grande domínio da máquina político-administrativa, pelo que as medidas de fundo — como leis orgânicas — têm de ser pensadas e a máquina ‘oleada’”.

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António Costa Pinto destaca aqui o “papel central” que o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares terá nesta matéria, já que cabe a Pedro Nuno Santos a ligação entre o Governo e os partidos que o apoiam na Assembleia. Muitas daquelas propostas de lei terão primeiro sido discutidas no seu gabinete e só depois no Conselho de Ministros, salienta.

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“No primeiro ano, o Governo esteve basicamente a cumprir os acordos em questões salariais, de Segurança Social, por exemplo, e para isso bastava eliminar legislação no Parlamento. Para isso, estavam lá os partidos à sua esquerda, que queriam mostrar iniciativa. Agora, o Governo tem mesmo que ter a sua iniciativa”, acrescenta Costa Pinto.

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Direita sabe que “não vale o esforço”

Outra constatação é que PCP e Bloco estiveram mais activos desde Setembro na fiscalização aos decretos-lei saídos da Presidência do Conselho de Ministros: pediram cinco vezes mais apreciações parlamentares a diplomas do Governo socialista do que na primeira sessão legislativa — nessa altura, embora os números globais fossem muito parecidos com os desta segunda sessão, na sua larga maioria diziam respeito a decretos-lei ainda do tempo de Pedro Passos Coelho. Ainda assim, nestes dois anos, comunistas e bloquistas reduziram para metade os pedidos de apreciação quando comparados com os dois primeiros anos de Passos Coelho.

Para Costa Pinto, “sendo esta solução de apoio ao Governo uma experiência inédita, é natural que os partidos à esquerda, sobretudo o PCP, peçam apreciações”. E que o façam muito mais do que a direita, que é oposição, que “sabe que não vale o esforço”. “A desconfiança à esquerda é ainda muito grande, o lastro de colaboração PS-BE-PCP-PEV foi sempre muito mais fraco do que entre PSD e CDS e o de demarcação muito mais forte — e, novamente, com o PCP a tentar sempre cavar mais fundo a diferença em relação aos socialistas do que o Bloco.”

Além disso, convém ter em mente, acrescenta o politólogo, “que os três partidos ganham com essa demarcação desde que ela não ponha em causa a estabilidade da coligação e se estiver numa espécie de perímetro de segurança que são as discussões parlamentares.”

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