A geopolítica do petróleo contra a Venezuela
A nova era em que entrou a indústria petrolífera / energia trouxe novos vencedores económicos e deslocou o poder geopolítico. A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro é um dos perdedores.
1. Nos últimos anos o mundo entrou naquilo que pode ser considerado a terceira era da produção de petróleo / energia. Daí resultam implicações económicas e geopolíticas profundas ainda mal percebidas. Importa por isso recordar, nos seus traços gerais, a evolução anterior. A primeira era da indústria petrolífera decorreu desde os seus primórdios, nos finais do século XIX, até aos anos 1970. O choque petrolífero de 1973, na sequência da guerra israelo-árabe desse ano, foi o seu marco terminal. A segunda era, iniciada após esse traumático choque energético para o mundo industrializado, marcou de tal forma o quadro mental posterior que muitos ainda julgam estar aí. Na realidade, a entrada em força da produção de petróleo não convencional, ocorrida na segunda década do século XXI, especialmente na América do Norte, inaugurou uma nova era da produção de petróleo / energia. Numa simplificação cronológica pode-se situar o seu início (visível) no ano de 2014. Aí o preço do barril de petróleo caiu de 115 dólares para 50 dólares. Como sempre acontece quando ocorrem grandes transformações, há ganhadores e perdedores. Neste caso, pelo que está em jogo, há ainda importantes consequências geopolíticas.
2. Cada uma destas eras da produção de petróleo / energia teve (tem) as suas regiões e actores dominantes. Na primeira era, os EUA, com a sua produção própria e grandes empresas multinacionais actuando no exterior, foram largamente dominantes e tendencialmente hegemónicos. A segunda era, como já referido, iniciou-se com a guerra israelo-árabe de 1973 e o embargo petrolífero, que levou a um aumento espectacular de preço do petróleo. Nela, os países árabes — especialmente a Arábia Saudita —, mas também outros membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), como o Irão, o Iraque, o Kuwait ou a Venezuela, tornaram-se actores centrais. (Tal como outros Estados não membros da OPEP, especialmente a União Soviética / Rússia.) Acumularam enormes recursos financeiros que procuraram traduzir em ganhos geopolíticos e projectar em influência no exterior. A Venezuela foi o último dos grandes produtores / exportadores a seguir essa estratégia, como veremos mais à frente. A actual terceira fase, marcada pela crescente importância do petróleo não convencional e novos produtores, irrompeu com o traumático ano de 2014. (Para muitos dos exportadores de petróleo esse foi o equivalente ao trauma do ano de 1973 para os países industrializados importadores). Nesta nova fase, a América do Norte readquiriu centralidade na indústria do petróleo / energia e os países da OPEP perderam, em termos relativos, poder económico e geopolítico.
3. Uma combinação de descoberta de novas reservas de petróleo não convencional e de avanços tecnológicos transformou profundamente o sector energético. Está na origem da já referida entrada na terceira era da produção de petróleo / energia, com múltiplas consequências. A crescente extracção / produção de petróleo de xisto (shale oil ou tight oil), um petróleo não convencional produzido a partir de fragmentos de xisto betuminoso, está a ter um grande impacto na indústria petrolífera, no mercado energético, e a provocar sequelas geopolíticas — no passado, as guerras do petróleo sempre tiveram uma dimensão geopolítica e geoestratégica. A técnica de fracturamento hidráulico (fracking) — controversa pelos potenciais impactos ambientais negativos —, está no centro dessa transformação. Em termos de regiões, a América do Norte, os EUA e o Canadá, aparecem agora como grandes produtores de petróleo não convencional e no centro desta revolução energética. No caso dos EUA, mais de metade da sua produção petrolífera tem já origem em petróleo não convencional. A transformação é notável: ainda há uma década e meia esta forma de extracção / produção era residual na indústria petrolífera e de energia norte-americana.
4. Para os Estados imbuídos de zelo missionário / religioso, como a Arábia Saudita e Irão, os recursos do petróleo sempre foram vistos como uma benesse divina. Esta benesse deveria ser retribuída com a exportação da “verdadeira” religião para o resto da humanidade (na realidade, mais uma vontade de poder e domínio de outros). No caso da Arábia Saudita, primeiro a aliança feita em 1945 com os EUA, e, depois, o enorme aumento do preço do petróleo após 1973, lançaram os sauditas na exportação do wahhabismo — uma forma retrógrada e puritana extrema do Islão sunita, que, de outra forma, ficaria confinada ao deserto arábico. Hoje os imensos recursos financeiros gerados pelo petróleo alimentam a engrenagem do islamismo radical e do jihadismo global. Suportam intervenções militares sauditas e do Conselho de Cooperação do Golfo (Omã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait), por exemplo contra os huthis xiitas no Iémen. No caso do Irão, a revolução iraniana de 1978/1979 levou o Ayatollah Ruhollah Khomeini ao poder e permitiu instalar um Estado teocrático. O zelo missionário persa e xiita também passou a impregnar a política externa do Irão. Os recursos petrolíferos / energéticos passaram a alimentar a expansão da “verdadeira” religião (na versão iraniana é o Islão xiita duodecimano da escola Jafari). A criação e apoio ao Hezbollah no Líbano, aos xiiitas no Iraque, aos alauítas da Síria (a minoria próxima do xiismo de Bashar al-Assad), etc., exemplificam esse zelo missionário, num misto de proselitismo e ambição geopolítica.
5. Em 1999, com a chegada de Hugo Chávez ao poder, a Venezuela foi o último dos grandes exportadores de petróleo a prosseguir uma política externa imbuída de zelo missionário e ambição geopolítica. Nesta versão, a "verdadeira religião" é secular: mistura bolivarianismo (o regime vê-se como herdeiro político e continuador de Simón Bolívar), com socialismo marxista (na linha do ideário igualitarista extremo de Karl Marx). Subjacente está a mensagem do Cristianismo, numa interpretação próxima das correntes da teologia da libertação mais radicais. Assim, surgiu em 2004 a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA). Integra, para além da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua e diversos Estados das Antilhas / Caraíbas. (O Irão e a Síria são observadores.) Surgiu também, em 2005, o Petrocaribe permitindo aos países das Antilhas / Caraíbas (República Dominicana, Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Guiana, Granada, Jamaica, etc.) comprarem petróleo venezuelano em condições preferenciais e sem intermediários privados. Surgiu, ainda, o Sistema Unitário de Compensação Regional (SUCRE), criado como uma moeda da ALBA, para contrariar a hegemonia do dólar e dos EUA. Tudo isto foi suportado pelos fluxos financeiros do petróleo, que, partir de 2004, entraram numa trajectória ascendente. Entre 2010 e 2013 atingiram valores na ordem dos 90-100 dólares por barril ou até superiores.
6. Pondo em comparação a política externa da Arábia Saudita, Irão e Venezuela, é curioso ver a maneira como esta última tentou replicar a estratégia dos sauditas, de exportação da sua ideologia / influência financiada pelo petróleo. (Isto apesar de estarem em campos opostos na política internacional). A criação de uma rede de alianças / instituições é um caso óbvio de paralelismo / imitação. Para a Arábia Saudita, a sua “claque de apoio” no contexto regional do mundo árabe-islâmico são os países do Conselho de Cooperação do Golfo. Para a Venezuela, no contexto regional das Américas, a "claque de apoio" são os países da ALBA. Em termos geopolíticos, as Caraíbas / Antilhas têm para a Venezuela um papel similar ao golfo pérsico / golfo árabe para a Arábia Saudita. Em qualquer dos casos — e abstraindo de considerações ideológicas —, as receitas do petróleo são cruciais para uma política externa deste tipo. Nos três casos, o sector petrolífero é dominado por empresas estatais, que são instrumentos desta política externa. Na Arábia Saudita, pela Arabian-American Oil Company (ARAMCO), hoje Saudi Aramco, totalmente detida pelo Estado saudita desde 1980. No caso do Irão, a Companhia Nacional de Petróleo Iraniana / National Iranian Oil Company (NIOC), um instrumento do Estado iraniano desde a revolução de 1978/1979. No caso da Venezuela, a Petróleos de Venezuela (PDVSA) é também uma empresa integralmente detida pelo Estado venezuelano e subordinada às suas orientações políticas.
7. A Venezuela tem uma população comparável à da Arábia Saudita, na ordem dos 30 milhões — e as maiores reservas mundiais de petróleo convencional —, mas foi bem mais afectada pela descida dos preços do petróleo que os seus parceiros da OPEP no Médio Oriente. A isso não é estranho o facto de mais de 90% das suas receitas dependerem dessa exportação. Nem, certamente, a falta de investimento no sector, com a indústria a PDVSA a tornar-se cada vez mais obsoleta. Múltiplas circunstâncias negativas convergem aqui. Primeiro, o abrandamento do crescimento da economia mundial ocorrido nos últimos anos, em particular da China. Este é um aspecto a reter: ao contrário do que frequentemente se pensa, é a China quem tem mais interesse no petróleo da Venezuela e não os EUA. Em finais nos anos 1990, a Venezuela era, de facto, o principal fornecedor externo de petróleo dos norte-americanos. Mas a situação alterou-se drasticamente nos últimos anos. Segundo dados da Energy Information Administration (EIA), em 2016 o peso da Venezuela no abastecimento dos EUA é muito inferior ao do Canadá (mais de 38%), ou da Arábia Saudita (11%) — 18 % para o conjunto dos países do Médio Oriente. Caiu para 8%, um valor próximo do México (7%), menos de metade do que era há quinze ou vinte anos atrás. Já no caso da China, tem vindo a aumentar. A Venezuela é o seu maior fornecedor nas Américas. Para além disso, a China é também o maior financiador e credor internacional da Venezuela. Parte da sua produção futura de petróleo já está vendida aos chineses.
8. A rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irão projecta-se na geopolítica do petróleo contra a Venezuela (e a indústria de shale oil da América do Norte). No âmbito da OPEP, a Arábia Saudita tem-se recusado a diminuir a sua produção — o que, a ocorrer, iria provocar um aumento do preço do petróleo. O seu alvo primeiro é o Irão, contra o qual está envolvida numa guerra sem tréguas, por interpostos actores, para controlo do Médio Oriente. Desta forma, os sauditas procuram atingir a indústria petrolífera iraniana, que, após o acordo com sobre o programa nuclear de 2015 com o chamado P5 +1 (EUA, Rússia, China, Reino Unido, França — membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mais Alemanha e União Europeia), viu serem progressivamente levantadas as sanções económicas internacionais. Assim, os sauditas pretendem afectar o Irão e o que seria um aumento do seu retorno financeiro pela venda de mais (e mais caro) petróleo. Mas o outro alvo desta “guerra surda” é a indústria de petróleo de xisto (shale oil ou tight oil), da América do Norte, especialmente dos EUA. Nas últimas décadas, esta fez um enorme investimento no petróleo não convencional. Todavia, tem um custo de extracção / produção bastante mais elevado do que o dos sauditas, pelo que é duramente afectada pelos preços baixos. Parte dos investimentos feitos pode tornar-se inviável (assim esperam os sauditas que aconteça).
9. Muitos olham para a geopolítica do petróleo / energia como se estivéssemos ainda na segunda era de produção. A Venezuela exemplifica esse quadro mental ultrapassado. Sendo o país com as maiores reservas de petróleo convencional, os simpatizantes do regime apontam o dedo aos EUA e às suas ambições hegemónicas. Acusam-nos de quererem derrubar Nicolás Maduro para controlar as reservas de petróleo venezuelanas. Ignoram coisas importantes. O regime tem muito que se queixar de si próprio: ao criar uma economia mono-exportadora e uma política externa totalmente dependente do petróleo, transformou o maior trunfo do país num pesadelo. Num cenário económico e geopolítico adverso, como o actual, o país fica paralisado. Muita da produção futura já está vendida à China, da qual a Venezuela se tornou cada vez mais dependente. Mais do que nos EUA, é nesse outro império — o Império do Meio (China) — que se joga o seu futuro. Quanto à indústria de shale oil cresceu nos últimos anos a par da quebra das exportações de petróleo da Venezuela (e do preço alto). Por isso, a contrário do que acontecia há uma década atrás, o interesse geopolítico dos EUA pela Venezuela é bem menor. A nova era em que entrou a indústria petrolífera / energia trouxe novos vencedores económicos e deslocou o poder geopolítico. A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro é um dos perdedores.