Earthworks e obras de arte: criação e destruição da paisagem americana

Uma viagem pelas obras de arte que deram visibilidade à exploração industrial e militar dos desertos do Utah e Nevada. Obras que mostraram como a paisagem é formada por processos de construção e destruição.

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Golden Spike National Monument, Promontory, Utah
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Spiral Jetty (1970), Robert Smithson. Rozel Point, Great Salt Lake, Utah
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Spiral Jetty (1970), Robert Smithson. Rozel Point, Great Salt Lake, Utah
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Sun Tunnels (1973-76), Nancy Holt. Lucin, Utah
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Sun Tunnels (1973-76), Nancy Holt. Lucin, Utah
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Pilot Mountain Road, Utah
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Bonneville Salt Flats, Wendover, Utah
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Mina Intrepid Potash, Wendover, Utah
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Base aérea, Wendover, Utah
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Mina Robinson, Ruth, Nevada
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Gap Mountain, Nevada
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Double Negative (1970), Michael Heizer. Mormon Mesa, Overton, Nevada
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Double Negative (1970), Michael Heizer. Mormon Mesa, Overton, Nevada
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Barragem Hoover, Arizona
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Barragem Hoover, Arizona

Este é o diário de uma viagem de quatro semanas pelo Sudoeste Americano. Passámos por seis estados — Utah, Nevada, Califórnia, Arizona, Novo México e Texas — e quatro desertos — Great Basin, Mojave, Sonora e Chihuahua — numa road trip de oito mil quilómetros. Viajei com o Tiago Silva Nunes, que fez as imagens deste artigo. Ao percorrer aquela paisagem encontrámos vários temas recorrentes: a história da ocupação da América do Norte pelos caminhos-de-ferro, pelas indústrias extractivas, pelas actividades secretas do Exército americano, pelas ruínas de povoações e cidades ligadas a um sistema económico liberal e implacável. A par dos factos históricos que povoam os lugares por onde passámos, somos assombrados pelo imaginário colectivo em lugares estranhos e familiares que conhecemos da literatura, da música, do cinema, dos noticiários. Na América, o espaço real está tão marcado pelo imaginário que hoje testemunhamos, com algum alarme, os sintomas desta fusão perigosa entre ficção e realidade. 

Esta viagem resulta do meu trabalho de investigação em história da arquitectura e foi a proposta vencedora do Prémio Fernando Távora 2017. Nela investigo os passos e as obras de artistas, arquitectos e historiadores da arte, incluindo o arquitecto Távora, que também viajaram e estudaram as obras e paisagens do Sudoeste Americano. A minha atenção foca-se primeiramente em artefactos que povoam os livros de história da arte, mas esses artefactos revelam muito sobre a história dos Estados Unidos, desde a mais remota à mais recente.

A  primeira vez que visitei os Estados Unidos foi há dez anos. Nessa altura passei seis semanas no Getty Research Institute, em Los Angeles, a ler os manuscritos do historiador de arquitectura Reyner Banham. Na década de 1970, Banham, depois de um desvio numa viagem entre Las Vegas e Los Angeles, teve uma epifania, uma visão quase mística no deserto que o levou a escrever Scenes in America Deserta (1982).

Foi esse manuscrito que estudei intensamente no Verão de 2007. Desde então interessei-me pelo trabalho de outros historiadores de arte que também viajaram e estudaram o deserto americano. Aby Warburg, que viajou no final do século XIX no território que seria mais tarde o estado do Novo México. George Kubler, que, na década de 1930, estudou a influência da arquitectura ibérica na construção de igrejas nos pueblos do mesmo estado. E, mais recentemente, Lucy Lippard, que escreveu sobre a arte produzida naquela paisagem marcada pelas indústrias extractivas. São estas figuras que estruturam o roteiro desta viagem. 

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Earthworks e obras de arte

A expressão "obras de arte" é usada em engenharia para descrever infra-estruturas de grande escala. De modo semelhante, nos Estados Unidos, a expressão "earthworks" descreve os trabalhos que requerem a alteração do território. No final da década de 1960, a palavra foi adoptada para descrever as obras de artistas que trabalhavam na paisagem. Assim, há um duplo sentido na palavra earthwork que serve tanto para descrever a mina de cobre Bingham Canyon em Salt Lake City, como a obra de arte Spiral Jetty, de Robert Smithson.

Este capítulo da viagem começa em Salt Lake City, Utah, e termina em Boulder City, Nevada. Cidades onde existem earthworks paradigmáticas, como a mina de cobre de Bingham Canyon e a grande Barragem Hoover. Neste percurso visitámos outras earthworks Spiral Jetty (1970), de Robert Smithson, Sun Tunnels (1973-76), de Nancy Holt, e Double Negative (1969-70), de Michael Heizer. Todas estas obras estabelecem diálogos com a história do território americano.

No final do século XVIII, depois da Declaração da Independência, os Estados Unidos ocupavam uma faixa estreita na margem leste da América do Norte, mas bastaram poucas décadas para expandir o seu território por todo o continente até ao oceano Pacífico. Esta expansão rápida foi propulsionada por uma vontade política justificada pela ideia de Destino Manifesto, em que a ocupação do território da América do Norte seria um direito inevitável, e quase divino, dos Estados Unidos. A mais forte evidência formal desse Destino Manifesto foi a expansão da rede ferroviária. A união simbólica desta ligação de costa a costa está marcada na margem leste do Great Salt Lake, onde se colocou a Golden Spike — a cavilha de ouro —, a última cavilha da longa linha de caminho-de-ferro "transcontinental", que passou a ligar as redes dos estados do Nebraska e Iowa à Califórnia no dia 10 de Maio de 1869.

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Tempo e história

A caminho de Spiral Jetty, de Robert Smithson, encontramos o Golden Spike National Monument. Smithson construiu a sua obra em 1969, no ano do centenário dessa ligação ferroviária. A celebração oficial do centenário incluiu uma viagem de comboio transcontinental, em que seguia John Wayne, que em muitos westerns personificou a vontade indómita de realizar o Destino Manifesto de expansão para oeste.

Smithson escolheu aquele lugar por causa da cor vermelha da água daquela metade do Great Salt Lake, uma consequência da divisão do lago em duas partes, por uma outra linha de caminho-de-ferro, o Lucin Cutoff. Depois desse corte, a água deixou de fluir naturalmente na parte norte do lago, tornando-se mais salgada. Esta alteração do ecossistema teve como resultado o desenvolvimento de microorganismos vermelhos resistentes ao sal. Em 1970, Spiral Jetty estava situada num lugar poluído e rodeada por água cor de sangue, encontrar-se-iam na areia os corpos de aves asfixiadas na água manchada com crude, proveniente de uma plataforma de extracção de petróleo activa até à década de 1990. 

Caminho até Spiral Jetty, percorro a espiral de blocos de basalto, o Great Salt Lake parece um grande mar remanescente de tempos primordiais. Lembro-me do mantra de Smithson, "lama, cristais de sal, rocha, água", repetido continuamente no filme que apresenta a obra. Mais do que um objecto artístico isolado, Spiral Jetty é um dispositivo para visualizar a história daquele lugar, desde a remota alteração geológica até à mais recente exploração humana.

Este lugar hoje parece sereno, no início de Junho aquela paisagem tinha ainda uma suavidade primaveril, o Inverno é longo naquele lugar a 1200m de altitude. Conduzimos por longas planícies, onde as cores rosadas da terra combinam com o azul-violeta das montanhas. Estas cores mudas, com muitas camadas de branco, fazem lembrar a experiência visual das profundidade brancas das pinturas de Agnes Martin. Esse percurso indica que o propósito da obra de Smithson é percorrer aquele caminho, passar pelo Golden Spike, pela antiga plataforma de petróleo e ver as águas vermelhas causadas pelo Lucin Cutoff em contraste com a natureza intocada das montanhas circundantes.

No livro Undermining (2014), Lucy Lippard refere que estas obras de arte "representam o seu papel agora que o mito do Velho Oeste dá lugar às realidades imobiliárias do Novo Oeste numa região onde o território é mais fascinante do que qualquer museu; ou numa visão mais pessimista onde o território protegido e classificado é musealizado na paisagem desfigurada por extracção e ganância". Estas palavras de Lippard pareciam antever o futuro de Spiral Jetty, que em Março deste ano foi nomeada a obra de arte oficial do estado do Utah. Smithson tornou-se o mais conhecido dos artistas que trabalhavam à escala da paisagem. A sua morte prematura, em 1973, numa queda de avião enquanto supervisionava a obra Amarillo Ramp no Texas, também contribuiu para que passasse a ser considerado mítico.

Seguindo o Lucin Cutoff durante uma centena de quilómetros a oeste de Spiral Jetty, chegamos a Lucin, onde se situa Sun Tunnels, de Nancy Holt, como se as duas obras estivessem virtualmente ligadas pela linha de caminho-de-ferro que divide o Great Salt Lake. Holt e Smithson eram casados, viviam em Nova Iorque e inicialmente trabalharam na paisagem mais urbana, industrial e familiar de Nova Jérsia. A sua viagem ao Sudoeste Americano, a convite de Michael Heizer, está documentada no filme Mono Lake (1968). Heizer levara já a sua prática artística para o deserto, fazendo desenhos que evocavam geoglifos, produzidos pelos trilhos das rodas de mota, usando a velocidade e a máquina para continuar a pulsão primordial de marcar o território.

Percorrer um longo caminho de encantamento até um lugar isolado também parece ser o propósito de Sun Tunnels, quatro túneis de betão, alinhados com a posição solar nos solstícios de Verão e Inverno. É nessas datas que inúmeras pessoas visitam este lugar — curiosos, fotógrafos que querem capturar o momento do alinhamento solar e místicos que celebram a natureza. Em cada um dos túneis, Holt marcou a configuração de quatro constelações. Esta obra dialoga também com a história, mas a uma escala mais vasta, é uma estrutura que permite enquadrar o tempo cíclico infinitamente longo que a Terra estabelece com o cosmos, é uma história com biliões de anos. Mas a experiência daquele espaço também pode ter um carácter mais imediato, como provam os trilhos de rodas de skate marcados no interior dos túneis.

Velocidade e destruição

De Lucin, rumamos a sul na Pilot Mountain Road, ao longo da margem do Great Salt Lake. Passado cinco horas, durante as quais não vimos ninguém, atravessamos o Leppy Pass e avistamos Bonneville Salt Flats à distância. São um resíduo do antigo lago Bonneville, que no Pleistoceno cobria uma parte do deserto Great Basin. Este lago evaporou e formou uma camada de sal, criando uma paisagem completamente mineral e deserta. É numa parte dessa grande superfície lisa de sal que se encontra uma pista de testes onde se batem recordes de velocidade em terra desde as primeiras décadas do século XX. Nesta visita aos Salt Flats vimos alguns carros comuns acelerando na superfície salgada, reencenando a ideia americana de liberdade e poder. Por todo o lado viam-se trilhos de carros que pareciam o geoglifo Circular Surface Planar Displacement Drawing (1969), desenhado por Michael Heizer.  A velocidade e a produção de uma marca num território virgem é uma ideia corrente no espírito da América.

Os Salt Flats não são só o lugar de encenação da liberdade, desde a década de 1930 que uma exploração mineira de potassa, agora feita pela empresa Intrepid Potash, recolhe o sal remanescente do Pleistoceno. Há evidências de que esta exploração está a deteriorar a camada de sal que suporta a pista de corrida. Esse desaparecimento é evidente nas margens da superfície salgada, onde os rastos de acrobacias automóveis ficam ainda mais marcados na areia com pouco sal.

Próximo dos Salt Flats encontramos a base aérea de Wendover, onde durante a Segunda Guerra Mundial se desenvolveram os treinos secretos do esquadrão dos bombardeiros, incluindo o avião Enola Gay, que em 1945 lançou o primeiro ataque atómico em Hiroshima. Sinais remanescentes da era atómica povoam o Sudoeste Americano, o deserto ofereceu o isolamento e a vastidão que permitiram o desenvolvimento de projectos militares secretos.

A base aérea foi transformada num aeroporto municipal, mas ainda se identifica o hangar do Enola Gay. Também existem alguns edifícios construídos propositadamente como cenários de filmes. É desconcertante encontrar assim, lado a lado, ruínas do legado atómico e cenários de ficção. Ali há um museu aberto que expõe aviões de guerra históricos, a certa altura vimos um avião surpreendente, um F35, um dos aviões stealth que parecem invisíveis a alguns radares. Pensámos que também fizesse parte da exposição e aproximámo-nos para tirar fotografias, até que um sargento da Força Aérea nos informou de que não podíamos estar ali, e que teríamos de apagar as fotografias do avião. A base aérea de Wendover é um lugar onde é evidente a coexistência da transparência com a opacidade, da realidade com a ficção.

Testes atómicos e estradas solitárias

Já no estado do Nevada seguimos caminho até à pequena cidade de Ely, onde passa a Route 50, nomeada a "estrada mais solitária da América", que nos leva a Ruth, uma cidade quase fantasma fundada como apoio a uma mina. Esta mina de Ruth é uma earthwork composta por socalcos tão perfeitos que parece uma escultura. Assim como Bingham Canyon, em Salt Lake City, esta é uma mina de cobre e ouro que, durante quase todo o século XX, foram propriedade da família Guggenheim, publicamente conhecida pelo mecenato e pelos icónicos museus agora espalhados pelo mundo. A relação entre estas earthworks com as obras de arte construídas por artistas não é só conceptual e formal, já que a sua construção foi possível através do apoio financeiro de herdeiros de fortunas provenientes das indústrias extractivas. As obras que visitámos neste capítulo da viagem — Spiral Jetty, de Robert Smithson, Sun Tunnels, de Nancy Holt, e Double Negative, de Michael Heizer — foram patrocinadas por Virginia Dwan, uma das herdeiras da 3M, Minnesota Mining and Manufacturing Company. Dwan foi uma galerista visionária, em 1968 organizou a exposição Earth Works, que estabeleceu a prática destes e de outros artistas a trabalhar no campo expandido da paisagem americana.

Michael Heizer foi um dos primeiros a explorarem o potencial artístico da paisagem do Oeste, e um dos poucos que escolheram viver no deserto do Nevada, onde a sua obra City está em construção desde 1972. Lembrei-me da City enquanto observava a perfeição dos socalcos construídos na mina de Ruth, pensei que talvez sejam os mesmos trabalhadores que colaboram na construção dessa obra. Em 2015, numa entrevista ao jornal The Guardian, Heizer admitiu que "precisa de alguém que trabalhe nas minas se quiser transformar um rochedo de 18 toneladas numa obra de arte"; o carácter temporário do trabalho dos mineiros também é conveniente para o artista, que normalmente os contrata quando não têm trabalho. "Em Great Basin, os trabalhadores são dispensados no Inverno", diz Heizer, por isso continua os trabalhos na City nessa altura.

Rumámos a sul, guiados pela Gap Mountain, a City está a poucas dezenas de quilómetros para lá desta montanha. À mesma distância para lá da City está o Nevada Test Site, possivelmente a maior earthwork produzida no território americano. Durante a segunda metade do século XX, fizeram-se aí os testes atmosféricos e subterrâneos de bombas atómicas. É uma intrincada estrutura de laboratórios e túneis subterrâneos, protótipos de cidades para testar resistência de materiais, grandes depósitos de detritos radioactivos sob a Yucca Mountain e centenas de crateras provocadas por explosões atómicas. É irónico que este lugar — onde é evidente a tão longa idade da Terra, que nos recorda continuamente que os cinco mil anos de história registada não passa de uma pequena fracção numa história longa com biliões de anos — seja o mesmo onde se testou uma arma tão destruidora.

Esta paisagem aparentemente tão natural e vazia de artefactos deve ainda ter resíduos dessas explosões. A área onde caíram as partículas radioactivas estende-se por centenas de quilómetros a leste do local onde foram detonadas as bombas-teste, seguindo a direcção dos ventos dominantes. A população das cidades espalhadas por esta área foi vítima da exposição à radiação. Um dos locais mais afectados foi a cidade de St. George, situada a mais de 500 quilómetros a leste das crateras atómicas. Para além da população residente, também uma parte da equipa de rodagem do filme O Conquistador — um épico de 1954 sobre Genghis Khan — foi afectada pela radiação, incluindo o seu protagonista, e personificação do Destino Manifesto, John Wayne.

Se Wayne personificou o destino de ocupação do território, Heizer trabalha com os elementos que compõem o ID americano: a marcação mecânica do território, a monumentalização das indústrias extractivas, a manifestação do poder humano sobre os fenómenos naturais. Heizer já tinha produzido algumas obras no deserto quando participou na exposição Earth Works. Em 1970, Dwan financiou a produção de uma obra de maior escala, Double Negative, um corte no topo da Mormon Mesa, perto de Overton, Nevada.

Heizer subtraiu à formação rochosa um volume com 15 metros de profundidade e 485 metros de comprimento. É uma obra que parece quase invisível até nos aproximarmos dela e entrarmos naquele monumental corredor. Era meio-dia quando a visitámos, o termómetro do carro marcava 45ºC, e por causa disso estruturámos a nossa visita como uma expedição de períodos curtos, tal como astronautas ou mergulhadores. Descemos o longo corredor de rocha, já há quase 50 anos que a erosão desfaz gradualmente aquele corte, que nas fotografias de 1970 parecia tão preciso. Há muitas rochas caídas que impedem a percepção de um corte perfeito, mas ainda é evidente a artificialidade da operação. As inúmeras camadas geológicas materializam o tempo longo da formação da crosta terrestre e contrastam com a aparente rapidez das operações de escavação — bastam horas para destruir o que se formou em milénios.

Deserto e água

Lá em baixo, a cor verde-azulada do corredor de árvores que acompanham o caudal do rio Virgin contrasta com o amarelo-dourado da formação rochosa. A manifestação da água no deserto tem uma presença luxuriante, esta água dirige-se para a última earthwork que visitaremos nesta fase da viagem, uma obra de arte de engenharia. A Barragem Hoover foi uma das grandes obras públicas patrocinadas pelo New Deal de Franklin D. Roosevelt. O carácter excepcional da estrutura é também evidente nos pormenores de desenho art déco de alguns dos elementos da barragem, que fazem lembrar a promessa futurista dos anos 1930, encenada em filmes como Metrópolis (1927), de Fritz Lang. A barragem marca um momento na história dos Estados Unidos em que a narrativa do excepcionalismo apoiou a produção de obras públicas que anunciavam um futuro de colectivização da prosperidade. Boulder City, a cidade desenhada para alojar os trabalhadores durante a construção da barragem, foi projectada seguindo os princípios de planeamento da cidade-jardim, essencialmente propondo espaços para desenvolvimento do bem-estar da comunidade. Esse projecto optimista ainda é evidente nas ruas da cidade — no cinema, no parque, nas arcadas com esplanadas de restaurantes e cafés, na bomba de gasolina vintage —, agora musealizadas como artefactos de uma ideologia extinta.

Actualmente, os níveis da água da Barragem Hoover são os mais baixos de sempre, e essa evidência está marcada pela faixa branca de depósito calcário nas margens do rio. Essa marca, tão branca, tão recta e tão perfeita, rima com a perfeição de outras earthworks, como Double Negative, mas ao contrário desta não é intencional, é a consequência da trágica descida gradual dos níveis da água. Esta marca branca é um sinal que nos mostra a inevitabilidade da próxima extinção, e relativiza a escala de todas as obras de arte e engenharia que visitámos.

A visibilidade da presença e da ausência da água no deserto recordam-nos incessantemente a escassez de recursos e a fragilidade do ambiente. Na próxima parte desta viagem iremos seguir um percurso que nos leva a alguns oásis e aquíferos no deserto, que estruturaram a ocupação do Sudoeste Americano, tanto pelos povos nativos como pelos pioneiros que os seguiram.

Eliana Sousa Santos é investigadora em pós-doutoramento no CES, Universidade de Coimbra

Prémio Fernando Távora é uma iniciativa da OASRN, Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos em parceria com a Câmara Municipal de Matosinhos e a Casa da Arquitectura

Esta série tem o apoio da Fundação Luso-Americana

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