Um vídeo que chocou o país e mudou a vida de seis adolescentes
Justiça Juvenil I. Nos últimos anos, não faltaram casos mediáticos de jovens que agrediram outros jovens. Que respostas encontrou a justiça, a escola, a família? O PÚBLICO consultou os processos e procurou respostas. Hoje recuamos a 2014 e 2015 e vamos até à Figueira da Foz.
Quando o pai de uma das jovens, que agrediram um rapaz de 16 anos em 2014, na Figueira da Foz, reconheceu a filha no vídeo das agressões que circulava na Internet, levou-a sem hesitar à esquadra da PSP. “Disse-lhe: ‘Agora vais à polícia dizer o que fizeste’”, conta Jorge Louro. Foi castigada, mas, como diz o pai, “ela já estava a castigar-se a ela própria ao não sair de casa por vergonha”. Ficou assim, fechada em casa, “durante um tempão”.
“Ela pode não ter pensado quando o fez, mas depois pensou. Agora está bem. Vai ultrapassando e já não se mete noutra. Serviu-lhe de emenda para todo o sempre”, acredita Jorge Louro, que obrigou a adolescente a pedir desculpa ao rapaz ofendido. O pai de outra jovem envolvida fez o mesmo e ainda foi à televisão pedir perdão pelo comportamento “inconcebível e impensável” da filha.
Além do rapaz vítima das agressões, nesse dia 27 de Julho de 2014 estavam presentes seis raparigas e dois rapazes. Mas apenas cinco (quatro raparigas e um rapaz) acabariam por ser visados por processos na Justiça por ofensa à integridade física qualificada. Pelo menos uma delas mudou de escola e de cidade. Alguns dos envolvidos ou os pais alteraram os seus contactos (a julgar pelo facto de os números de telemóvel ou de casa que constam no processo que o PÚBLICO consultou se encontrarem agora desactivados).
Quando em Maio de 2015 o vídeo com as agressões foi tornado público na Internet, todos os que nele apareciam como agressores deixaram de ir às aulas “com medo de represálias”, lê-se nos autos da Esquadra de Investigação Criminal da Divisão da PSP da Figueira da Foz, que diz ter recebido “dezenas de chamadas de pessoas a comunicar a sua repugnância pelas imagens”. Os crimes “provocaram grande alarme social e intranquilidade pública”.
“São situações muito penosas” também para as famílias dos suspeitos, nota Ana Moreira e Bento, psicóloga e técnica superior da Direcção de Serviços de Justiça Juvenil da Direcção-Geral da Reinserção Social, que lida com muitos processos que envolvem menores, mas faz questão de sublinhar que não pretende referir-se a nenhum em concreto, nomeadamente a este da Figueira da Foz. É comum, prossegue, pais e jovens tentarem cortar com um passado conturbado. “Muitas vezes as famílias acabam por mudar de local de residência, alteram as suas rotinas para não se cruzarem com as pessoas que conhecem os factos, alteram números de telefone. Por vezes, há necessidade de mudar de escola.”
Este caso, descrito pela juíza que o julgou como revelador de “especial censurabilidade e perversidade”, nunca teria chegado a tribunal, se não fossem as imagens partilhadas por dezenas de milhares de pessoas. Registaram dois milhões de visualizações em apenas 24 horas, contam as duas advogadas Ana Lopes Curado e Portilho Soares, que acompanharam os agressores maiores de 16 anos que foram a tribunal.
Até o vídeo ser divulgado, a vítima não disse nada a pais e amigos. Manteve-se durante meses em silêncio. Só fez queixa impelido pela mãe quando também esta, em Maio de 2015, foi surpreendida pela gravação, que mostrava o filho encostado à parede, rodeado de raparigas e rapazes adolescentes e indefeso perante os ataques a que era sujeito no átrio de um edifício numa rua pouco movimentada da cidade. Eram todos estudantes em diferentes escolas.
Mais de dois anos passados, Carlos Santos, o director da Escola Secundária Joaquim de Carvalho frequentada pelo jovem agredido, diz que as imagens chocaram dentro da comunidade escolar e fora dela. “O rapaz já tinha posto isto para trás das costas. De um momento para o outro, vê-se dentro daquela cena a ser vista por milhões de pessoas.”
Ouvido pela procuradora adjunta do DIAP da Figueira da Foz, uma semana depois de as imagens terem corrido na Internet e nas televisões, o rapaz contou que “ficou com o rosto inchado e com dores”. Explicou também que “nada disse aos seus pais sobre os factos (...) pois considerou que a situação estava resolvida”. Reconheceu que “a divulgação do vídeo na Internet, sem o seu consentimento”, o afectou. E aos pais.
“O aluno superou a situação e já está no ensino superior”, noutra cidade, conta-nos o director da escola Carlos Santos. Ele já tinha planos para continuar os estudos e, nesse sentido, teria sempre de sair da Figueira da Foz. “Procurámos [na altura] auxiliá-los o mais possível, a ele e à mãe”, assegura.
A escola falou do assunto com os seus alunos e aproveitou para reforçar a presença de uma temática que “já antes era abordada”: Educação para a Cidadania. Desapareceu do programa oficial de ensino, mas na Joaquim de Carvalho manteve-se como uma das ofertas complementares do currículo. E é neste espaço, explica o director, que debatem a violência escolar ou no namoro.
12 minutos e 55 segundos
A reacção de solidariedade por parte dos colegas e professores foi total, garante. Foi inversamente proporcional aos comentários hostis e insultos enviados através das redes sociais aos agressores, acrescentam as advogadas. Além de os expor na comunidade, o vídeo serviu de prova: são 12 minutos e 55 segundos de agressões no corpo e na cabeça do rapaz, chapadas, pontapés, insultos e humilhações. O grupo não o deixa proteger-se ou fugir. Em vez disso, goza “ostensivamente” e “cobardemente” com o “sofrimento da vítima”, lê-se na sentença que saiu a 22 de Setembro de 2016.
“É elevada a ilicitude e a culpa dos arguidos, tendo em conta o dolo intenso com que actuaram. Está à vista de todos a gravidade dos factos” com impacto “no ofendido, na comunidade em geral, e na Figueira da Foz em especial”, prossegue a juíza Susana Margarida Duque. A magistrada minimizou a importância da confissão dos jovens visados por acusações de ofensa à integridade física qualificada, uma vez que as imagens “teriam sido suficientes” para incriminar os agressores.
Os inquéritos relativos a três menores de 16 anos seguiram para os serviços do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores. Os processos foram suspensos, como prevê a Lei Tutelar Educativa de 1999 (revista em 2015), para casos em que o facto praticado é de reduzida ou média gravidade — punível com pena de prisão não superior a cinco anos —, como acontece com a ofensa à integridade física qualificada que o tribunal considerou ter sido praticada neste processo.
Pedido de desculpas
As três jovens e seus representantes comprometeram-se com um “plano de conduta”. A saber: um pedido formal de desculpas ao ofendido perante um magistrado do Ministério Público (o que aconteceu) e tarefas a favor da comunidade. A cada uma das raparigas foram atribuídas 36 horas a cumprir em centros sociais e paroquiais da zona da Figueira da Foz.
No caso dos dois jovens maiores de 16 anos à data dos acontecimentos — Verónica e Samuel (nomes fictícios) — os inquéritos foram conduzidos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal da Figueira da Foz. Verónica, com 16 anos na altura das agressões, e Samuel, com 17, já tinham ambos a idade da responsabilidade criminal para responder em tribunal e incorrer numa pena de prisão efectiva: o crime por que vieram a ser condenados — ofensa à integridade física qualificada — não prevê uma pena suspensa. Mas ambos beneficiaram do Regime Especial para Jovens entre os 16 e os 21 anos e, por conseguinte, da suspensão da pena. “A simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente a finalidade da punição”, considerou a juíza.
A magistrada referiu ainda que sendo o julgamento em 2016 relativo a actos cometidos em 2014, e “não havendo condenações posteriores”, tudo indicava que este era “um acto isolado na vida destes jovens”. A suspensão, considerou, “tem um sentido pedagógico e reeducativo”, baseia-se “não numa absoluta certeza, mas numa esperança fundada de que a socialização em liberdade seja realizada”.
Verónica foi condenada a sete meses de prisão e Samuel a oito meses. As penas foram suspensas por um ano, ficando os dois obrigados a cumprir um regime assente num plano definido pela Direcção-Geral da Reinserção Social, com o objectivo de não voltarem a violar a lei.
Ficam com cadastro, ao contrário dos colegas cujo inquérito seguiu para o tribunal de menores — nestes casos os registos ficam apenas na posse das entidades judiciais e são destruídos, quando os visados completam 25 anos.
Terapia e trabalho cívico
Verónica perdeu os amigos e afastou-se do grupo que tinha participado nas agressões, conta a advogada. Vive na mesma casa, com os pais e os irmãos mais novos. Enquanto o processo lho permitiu, ainda se ausentou da sua cidade e do país e passou uma temporada com uns tios paternos que vivem na Suíça. É para lá que planeia voltar quando acabar de cumprir o plano de reinserção social entretanto definido: completar o 9.º ano de escolaridade ou curso profissional equivalente, fazer 90 horas de trabalho cívico numa associação de protecção de animais e frequentar consultas de psicologia ou psiquiatria “de acordo com plano de intervenção terapêutico” a estabelecer.
Também Samuel teve de cumprir o mesmo regime — consultas e plano terapêutico, curso profissional com equivalência do 9.º ano de escolaridade e tarefas a favor da comunidade, no seu caso, 100 horas numa associação que trabalha com populações desfavorecidas.
Durante o prazo da suspensão da pena de prisão, que termina em 22 de Setembro deste ano, não podem cometer novos ilícitos, sob pena de irem mesmo parar à prisão. De acordo com as advogadas, era esse o “grande medo” de ambos. “Prisão e não só”, diz Jorge Louro, pai de Verónica. “Foi a vergonha.” Para este trabalhador da construção civil, com a mulher desempregada, a vida continuou, na mesma casa, ao lado dos mesmos vizinhos. Na comunidade não sentiram qualquer apoio. “Nós safámo-nos muito bem sozinhos”, diz. “Isto já passou. Agora é só livrar-se disto e continuar a vida dela.”