Os amadores do cinema

Fotografia e Cinema Moderno — Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra começou como tese académica. Mas a teoria tem um peso menor do que é costume no livro de Luís Mendonça. Daí poder falar-se de “história” e de “personagens”.

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Percebe-se a preferência de Luís Mendonça pelos críticos de cinema que teorizam em relação aos teóricos “puros”

“That’s all any of us are: amateurs. We don’t live long enough to be anything else”. Esta linha de diálogo de Luzes da Ribalta de Charles Chaplin, dita por Calvero, o palhaço caído em desgraça interpretado pelo próprio cómico inglês, é repetida por Luís Mendonça ao longo de Fotografia e Cinema Moderno — Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra. A recorrência da citação não se deve apenas à importância da ideia de “amador” (aquele que ama) para o livro de Mendonça (cada um dos conceitos que compõem o título e sub-título do mesmo será devidamente definido, discutido e explorado) mas sobretudo de quem a diz.

O autor convoca Chaplin como grande figura tutelar nesta tarefa de desvendar as várias ramificações do cinema moderno e seus directos antecedentes. A escolha poderia parecer estranha não fosse a pouca relevância dada por Luís Mendonça a qualquer linearidade cronológica, numa lógica em que os pioneiros do cinema mudo, em particular os cómicos como Buster Keaton ou Harry Langdon (não por acaso, o livro começa com a descrição de uma curta-metragem sua, na qual uma simples sessão fotográfica desemboca na anarquia habitual das comédias da época), são já modernos. Por outro lado, Charles Chaplin comparece realmente a diversos momentos-chave desta história e relaciona-se com algumas das personagens mais relevantes.

À semelhança da larga maioria dos livros sobre cinema publicados em Portugal, Fotografia e Cinema Moderno surgiu primeiro como tese académica, sobre a relação “incestuosa” entre fotografia e cinema e como esta enformará a modernidade cinematográfica nas décadas de 50 e 60 do século passado. No entanto, a teoria tem um peso menor do costume em obras deste tipo. Daí poder falar-se de “história” e “personagens”, face ao irreprimível prazer de Luís Mendonça em contá-la e em descrevê-las.

O autor dá mais espaço à dupla Morris Engel e Ruth Orkin, casal de fotógrafos de rua que um dia decidiu pegar numa câmara de filmar e realizar, quase sem meios, uma longa-metragem de ficção sobre a aventura de um rapazito no parque de diversões de Coney Island — Little Fugitive, reverenciado pelo bando dos Cahiers du Cinéma e influência directa de Os Quatrocentos Golpes de François Truffaut —, do que a Gilles Deleuze, e mais relevo a Lionel Rogosin, um engenheiro químico veterano da Segunda Guerra Mundial que se atirou às “mean streets” de Nova Iorque para filmar os corpos e os copos de alcóolicos até aí anónimos — no seminal On the Bowery, percursor da obra de Pedro Costa a partir de No Quarto da Vanda, na sua mistura entre ficção e documentário —, do que a Siegfried Kracauer.

Mesmo se a teoria ou, mais precisamente, um certo discurso académico, denso e complexo, não está ausente de Fotografia e Cinema Moderno — o pesado capítulo dedicado à dificuldade em representar os horrores do Holocausto e como tal alterou para sempre a(s) maneira(s) de fazer e ver cinema será o caso mais evidente: dá ideia de que o livro se obriga a lembrar-se de que foi antes uma tese e interrompe, por momentos, o seu fluxo —, Luís Mendonça sabe misturá-lo no seu raconto, no qual cabem as tais “personagens”, curiosas tangentes (por exemplo, sobre os parques de diversões e de como estes desapareceram com o advento da televisão, temível antagonista desta história de rua, de infância, de amadorismo), ligações improváveis (Mendonça pega nuns sapatos e vai de Martin Heidegger a Van Gogh, passando pelo fotógrafo Walker Evans, acabando necessariamente em Chaplin) e, acima de tudo, os filmes.

O gosto do autor em narrar cada uma das obras que aborda — Little Fugitive, In the Street, On the Bowery, as curtas líricas de Rudy Burckhardt e Joseph Cornell, até as fotografias noir de Weegee —, dando-as a ver (ou a imaginar) ao leitor, é inegável. Talvez essa vontade de partir dos filmes, do concreto para o geral, anunciada logo na introdução, seja a maior diferença de Luís Mendonça para outros autores académicos contemporâneos, mais propensos à abstracção da teoria. Contudo, esta alarga-se pelo discurso carregado de trocadilhos (cinéfilos e literários), por vezes bastante subjectivo, a roçar a escrita do crítico, permitindo-se até algumas passagens poéticas.

De resto, percebe-se desde cedo a preferência de Luís Mendonça pelos críticos de cinema que teorizam — Serge Daney, Éric Rohmer — em relação aos teóricos “puros”. Dentro os do primeiro tipo, destacam-se as outras duas figuras tutelares de “Fotografia e Cinema Moderno”: André Bazin e James Agee (grandes admiradores de Chaplin, como não poderia deixar de ser). O fantasma de Agee, crítico de cinema, romancista e poeta, vítima de um ataque cardíaco aos 45 anos, paira um pouco por todo o lado: sobre o trabalho de Helen Levitt, com a qual colaborou como cameraman em In the Street e argumentista em The Quiet One; sobre o documentário-ficção, através de Let Us Now Praise Famous Men, livro de fotografia co-assinado com Walker Evans, no qual Luís Mendonça encontra já o cinema de Rogosin e Pedro Costa; sobre o cinema mudo de D. W. Griffith e Charles Chaplin; sobre o neo-realismo italiano; sobre…

Um dos aspectos mais interessantes do livro é o à-vontade com que as personagens dialogam umas com as outras (e com os filmes, as fotografias, as ideias), a sem-cerimónia com que entram nas histórias uns dos outros, às vezes inesperadamente (as chocantes fotografias de Weegee a desaguarem no cinema underground mais experimental). O fundador dos Cahiers du Cinéma, por seu lado, não só ajuda Mendonça a definir o conceito de realismo (ou realismos) num dos primeiros capítulos como lhe passa uma certa maneira de escrever sobre cinema, apaixonada, reflexiva, conflituosa, imperfeita. Numa palavra, amadora.

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