O Cairo entre a tradição e a modernidade

Os romances de Naguib Mahfouz, o primeiro escritor árabe a ser distinguido com o Nobel, elevam a cidade do Cairo ao estatuto de personagem. Nos seus livros, o leitor viaja entre becos esconsos e palácios, atravessando décadas de História e encontrando-se com gente de todas as classes sociais.

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O egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006) foi o primeiro escritor de língua árabe a ser distinguido pela Academia Sueca com o Prémio Nobel de Literatura (1988). A sua obra caracteriza-se pela versatilidade (desde o romance histórico até à literatura do absurdo, passando pelo romance realista) e teve quase sempre a cidade do Cairo como cenário (melhor seria dizer como personagem). É nessa gigantesca metrópole labiríntica que Mahfouz se deixa perder (levando com ele os leitores) para explorar os conflitos entre uma vida tradicional, que na sua essência assenta em preceitos religiosos, e os elementos de modernidade que entretanto chegam. Em quase todos os seus romances as personagens são uma espécie de arquétipos das várias classes sociais da cidade ao longo do século XX, recorrendo o autor, para isso e amiúde, à narrativa de sagas familiares que atravessam dezenas de anos da história do Egipto urbano, nomeadamente do velho e do novo Cairo. Conjugando elementos clássicos da literatura árabe (as Mil e uma Noites, por exemplo) e do romance europeu moderno, a escrita iluminada e colorida de Mahfouz, consegue transportar o leitor para um mundo de contadores de histórias de uma cidade de onde é difícil querer sair.

No romance O Beco dos Milagres (Contraponto, 2009), Mahfouz interroga-se sobre a natureza diversa da cidade do Cairo (aliás, todo o livro é uma miniaturização da cidade): “Muitos são os testemunhos que garantem que o beco Midaqq era uma das maravilhas antigas, que brilhou um dia na história do defunto Cairo como uma estrela cintilante. A que Cairo me estou a referir? Ao dos Fatímidas? Dos Mamelucos? Dos sultões? Só Deus e os historiadores o sabem, mas, seja como for, o beco é uma relíquia.”

Resistência à mudança

É da sua autoria uma das mais famosas obras-primas da literatura árabe contemporânea, a “Trilogia do Cairo” (Civilização, 2006). Composta pelos romances Entre os Dois Palácios, O Palácio do Desejo, e O Açucareiro, neles se narra a história de uma família e de um país numa sociedade que há séculos resiste à mudança. O primeiro volume tem como cenário a ocupação britânica do Egipto logo após a I Guerra Mundial, e narra a história da família Gawwad. Ahmad, um comerciante da classe média, governa a sua casa à maneira de um tirano e segundo os rigorosos princípios do Alcorão, mas durante a noite explora os prazeres do Cairo. A mulher e as duas filhas vivem oprimidas e confinadas à casa, e os três filhos varões vivem com medo da severa vontade do pai.

No segundo volume, O Palácio do Desejo, cuja acção decorre entre 1924-1927, a família Gawwad continua a deparar-se com a chegada ao Cairo de elementos de modernidade que, de uma maneira ou de outra, os obrigam a confrontar-se com os seus desejos secretos e com a obediência cega aos preceitos da religião islâmica. Esta saga familiar, com uma profundidade que faz lembrar os clássicos russos, é um espelho dos conflitos, não raras vezes violentos, entre um mundo em mudança e os ideais de uma sociedade que na sua essência é, e apenas “aparentemente”, conservadora.

No terceiro volume, O Açucareiro, a acção começa em 1935, oito anos depois do final da história do livro anterior. Neste derradeiro tomo, Mahfouz mudou completamente o centro da acção, o eixo da história já não passa pelo patriarca, tirano e conservador dentro de portas, o pater-familias Ahmad Abdel Gawwad, que é agora um velho doente, já incapaz de controlar o destino de todos, e está cingido ao seu quarto. A narração da construção do Cairo (Egipto) moderno é desta vez feita seguindo os acontecimentos vividos pelos seus três netos: Ahmad interessa-se por política, é um convicto defensor do marxismo e casa-se com uma colega de trabalho (o que choca toda a família: casar com uma mulher que trabalha); Abd al-Muni’m é um muçulmano devoto, fundamentalista e activo socialmente; Ridwan, o neto predilecto do velho déspota, tem um talento especial para arranjar amigos “bem colocados” no poder e mover influências políticas, tudo graças à relação homossexual que mantém com um importante político. A narração termina em 1944, no momento exacto em que se prevêem as mudanças mais radicais no Egipto, onde se continua a tentar conciliar modernidade e tradição.

Num outro romance, O Cairo Novo, (Civilização, 2010), o Egipto urbano (Cairo) continua a deparar-se e a debater-se com o conflito do que fazer com os elementos de modernidade que, entretanto, vão chegando (era então o tempo de as primeiras raparigas começarem a frequentar a universidade), e que, de uma maneira ou de outra, obrigam os cairotas mais instruídos a confrontarem-se com os seus desejos secretos versus a obediência mais ou menos cega aos preceitos tradicionais da religião islâmica. Esta história, de alguma profundidade existencialista, a fazer lembrar uns poucos de romances franceses da época em que foi publicada (1945), é um espelho límpido desses conflitos, não raras vezes de uma violência psicológica atroz, entre um mundo em mudança e os ideais de uma sociedade que na sua essência é (e quer continuar a ser) “aparentemente” conservadora; as profundas desigualdades sociais e económicas completam o cenário. Triângulos amorosos e histórias de amores proibidos enchem páginas dos romances de Mahfouz. Também em O Cairo Novo há um Mahgoub, o pobre ambicioso e sem escrúpulos, a jovem desesperada de nome Ihsan, e o homem corrupto; mas no fim, como numa história de proveito e exemplo, todo o cenário começa a cair, e o preço a pagar anuncia-se demasiado alto.

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