O que aconteceu em Jerusalém?
Nem os palestinianos nem ninguém pretende ver os seus lugares sagrados transformar-se num campo de batalha.
Milhares de palestinianos e palestinianas encheram as ruas de Jerusalém na sexta-feira passada em protesto contra a colocação de detectores de metais e contra as restrições de entrada na Jerusalém antiga, medidas levadas a cabo pelo governo israelita alegadamente por razões de segurança, depois da morte de dois agentes de polícia. O controlo e a militarização da entrada num lugar de oração são equiparáveis a um controlo exercido à entrada das próprias casas dos palestinianos. Sublinhe-se que estas medidas são normalmente apenas aplicadas aos palestinianos, enquanto se continua a permitir a entrada no complexo da Mesquita Al-Aqsa a grupos judeus extremistas armados.
Com o anúncio israelita sobre a retirada dos detectores de metais e de todos os meios de vigilância, é importante salientar que o protesto foi contra uma de muitas medidas do projecto israelita de controlar totalmente a cidade, projecto este que ainda se mantém. A este propósito, convém lembrar que em todas as resoluções internacionais, Jerusalém Oriental é considerada território palestiniano ocupado ilegalmente por Israel. A cidade encontra-se interdita à maioria do povo palestiniano, incluindo pessoas como eu, palestiniana com nacionalidade portuguesa.
Nem os palestinianos nem ninguém pretende ver os seus lugares sagrados transformar-se num campo de batalha e, por isso, este protesto começou como um acto pacífico: simplesmente rezar fora do complexo, recusando a obrigatoriedade de passar pelo controlo imposto. Algo que mereceu do poder ocupante uma resposta violenta e, consequentemente, desproporcionada, pronto a responder ao mais inofensivo gesto de protesto com níveis de brutalidade que podem chegar à morte. Testemunho dessa brutalidade é a imagem de um soldado israelita a pontapear cobardemente um palestiniano enquanto este, ajoelhado no seu tapete, realizava a sua reza.
Pelo contrário, são momentos comoventes aqueles que nos revelam palestinianos cristãos ao lado de palestinianos muçulmanos, orando num mesmo ritmo e comungando das mesmas preces: uma oração em gesto de protesto contra a ocupação e contra a continuação da humilhação dos palestinianos em Jerusalém.
As imagens recorrentes dos últimos dias indiciam que estes últimos acontecimentos não são “uma tensão religiosa”, como Israel, com a ajuda dos media, nos quer fazer acreditar. A narrativa preponderante ignora em absoluto a desigualdade de poder entre o colonizador e o colonizado, e o facto de Israel tentar transformar esta cidade multirreligiosa e multicultural numa cidade puramente judia. Na verdade, esta medida é apenas mais uma de muitas que têm como objectivo a limpeza étnica da cidade relativamente aos seus habitantes palestinianos. Prova evidente disso é o caso dos bilhetes de identidade dados aos habitantes palestinianos da cidade, que não lhes garantem direitos completos de residência e que são regularmente confiscados, ao contrário dos judeus que imigram para Jerusalém, aos quais lhes é garantida cidadania imediatamente. Uma outra é o orçamento escasso dedicado aos bairros palestinianos, bairros onde o nome de ruas está constantemente a ser mudado com o intuito de apagar quaisquer vestígios da identidade palestiniana. Nos últimos dias, esta tentativa de limpeza étnica é mais clara através da declaração de uma das organizações israelitas que defende este projecto, o Instituto do Templo. Financiado pelo governo israelita e apelando ao controlo total do complexo da Mesquita Al-Aqsa e a sua substituição por um templo judeu, aproveitou esta oportunidade para mais uma vez incitar à imposição das suas pretensões.
Este protesto espalhou-se por toda a Cisjordânia, causando a morte a quatro palestinianos e deixando feridos mais de 450 perante o silêncio do mundo. Foi preciso que morressem três colonos israelitas para que se conhecesse uma reacção da comunidade internacional, como se a vida palestiniana não merecesse o choro.
O artigo na Al Jazeera de Diana Buttu (22.07.2017) explica como Israel tem utilizado o pretexto da segurança para continuar esta limpeza étnica. Em nome da segurança, Israel continua a construir colonatos, rouba terras aos palestinianos e é em nome desta mesma segurança que Gaza se encontra sob bloqueio, vivendo com quatro horas diárias de electricidade, sem hospitais funcionais ou água potável, como bem mostra um artigo publicado esta semana no PÚBLICO.
A criação desta tensão deve ser vista como uma estratégia por parte de Benjamin Netanyahu, que desviou a atenção do caso de corrupção em que se viu envolvido e que insistiu em instalar os detectores de metais à entrada da mesquita em Jerusalém, apesar de a decisão ter sido desaconselhada pelos próprios exército e polícia secreta israelitas, tendo sido avisado de que esta medida em nada serviria a segurança e que provocaria um escalar de violência. Buttu lembra que quando a mesma situação aconteceu aos palestinianos em Hebron, em 1994, o terrorista israelita Baruch Goldstein entrou numa mesquita disparando indiscriminadamente, matando 29 pessoas e ferindo outras 100 enquanto rezavam — foram os palestinianos e não os israelitas que sofreram com as restrições impostas por alegadas razões de segurança. Como em Hebron, é mais uma cidade de apartheid que Israel pretende fazer de Jerusalém.
Considerar que esta tensão é gerada por divergências religiosas é ignorar a raiz do problema. Este mais recente protesto do povo palestiniano deve ser visto como um acto humano de resistência no contexto da luta global contra ocupação, exílio forçado, apartheid e limpeza étnica.