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Entre o seu peito e o teto o ar sobra-lhe, pousa como um corpo deitado sobre o seu. Antes fosse uma mulher, um pouco mais pequena, um pouco mais leve que aquele quarto

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Filipa Godinho

Ele conta os cigarros. Um, dois, três. Quatro. Não está certo de serem cigarros. A luz parece-lhe agressiva demais, semicerra os olhos e espreitando entre as linhas difusas conta outra vez, cinco, seis, dobrados, tortos, com unhas. São dedos. Suspendem-se muito brancos, enrolados na pele-mortalha quase transparente sobre o seu rosto. Tenta levá-los à boca devagar. Um emaranhado de dedos e cigarros fechados em punho. A mão vem lenta. Desce tão demoradamente que a ansiedade para a sentir nos lábios vira fome, sôfrega, urgente, traça. Quer fumar. Quer levantar a cabeça da almofada e esticar-se para sugar o mundo inteiro num grito invertido capaz de lhe ocupar todo o peito, senti-lo crescer dentro até queimar, arder de tão cheio, arder por sentir. Sentir.

Junta os lábios e estica-os para a frente como quem estende um braço, para sugar o fumo a todos os dedos. Aguarda com a boca em beijo. Tudo é lento. A mão fechada desce, toca-lhe a maçã do rosto, devagar, pousa a sua leveza sobre a leveza exagerada do corpo. O toque. Fecha os olhos e sente o toque. Não está só. O conforto de um quase abraço percorre-lhe o corpo. Está seguro. Na frente do rosto o campo de visão está livre até ao teto branco, quase infinito. Não pretende compreendê-lo. Olha simplesmente. Sabe que nada vai acontecer ali. Fica imóvel. Olha o branco, a luz mais ou menos intensa que faz o tempo passar. Espera. Espera nada. O nada vem e pousa-lhe sobre o corpo deitado. Pesa pouco, pressiona-o só um pouco mais fundo no colchão, aproxima-o só um pouco mais do centro da terra. Não tem medo. Entre o seu peito e o teto o ar sobra-lhe, pousa como um corpo deitado sobre o seu. Antes fosse uma mulher, um pouco mais pequena, um pouco mais leve que aquele quarto.

Do silêncio rasga-se o som de um metal a raspar outro. Uma breve corrente de ar abre a entrada ao som de borracha esmagada por dois pés a alternarem pelo chão. Parecem chiar. Parecem animais a vir, pequeninos, agudos. Trazem a voz doce de uma menina que fala e mexe em todas as coisas. Abandonando os olhos presos no teto ele concentra-se inteiro no escutar do cântico quase musical das palavras que invadem o quarto. O ar já não sobra. É necessário. Abriu-se no seu corpo um lado de fora. Ela aproxima-se. Junto ao corpo dele segura o lençol com ambas as mãos e sacode-o bem alto. O ar quente que lhe sai do corpo varre-lhe o rosto. Fecha os olhos, muito, muito. Ela sobe e desce o lençol até o ar sair frio. Abrindo o escuro ele espreita. O teto estende-se quase líquido sobre o seu corpo e a luz varia todos os tons de branco numa dança hipnótica, incompreensível, horizontal. Dança com ele, sobre ele, onírico, etéreo, tocando-lhe a pele, soprando-lhe o rosto. Vai e vem vezes que nem consegue contar, uma, duas, três. Suspende-se, toca-lhe os pés. Volta e toca-lhe os joelhos. A realidade à volta parece desmoronar-se em tons de branco, as paredes, o teto, as coisas, tudo se converte em vento morno a pousar-lhe no rosto. Ele não teme, rende-se à beleza do quarto que se fecha sobre ele em manchas leves de luz, caindo-lhe sobre a pele, sobre os ossos, agitando-se longe e perto, fora e dentro.

O som das borrachas chia mais um pouco pelo chão e vêm umas mãos, rodam-no sobre si mesmo, aconchegam-no mais fundo. Nas costas uma almofada segura-o virado e na sua frente a paisagem muda para uma porta e uma parede ao fundo. O branco cai-lhe sobre o ombro, prende-se, prende-o, ficam ambas as mãos na frente do rosto entre duas grades de madeira. Um cobertor pesa-lhe. Sente-se esmagadoramente abraçado pelo teto, pela casa, reduzido a um corpo sob escombros e a cabeça de fora. Tijolo entre tijolos.

Os sons saem todos juntos chiando para lá da porta fechada. Entra o silêncio. Tudo está quieto. Ele sossega, quer permanecer imóvel para não voltar a acordar o mundo das coisas que se mexem à volta. Observa os seus dois punhos fechados. A cor branca das suas mãos, o branco da gaze entre dedos. Sente-se barco atracado, os braços como cordas em volta da grade. Serena. O peso sobre o ombro parece diminuir. Há um conforto crescente naquela forma de estar soterrado. Observa. A gaze que lhe sai das mãos lembra-lhe a saia de uma bailarina, não consegue focar tão perto. Foca longe. Imagina que a vê, sobre aquela tábua envernizada horizontal onde a gaze pousa. Desfocada. Ao fundo. Vestida de branco. Parece vir cada vez mais perto e erguer-se junto a ele. O corpo dela erguido, de repente adulto, encaixa as mãos nas dele. Protege-o. Segura-as como um globo, um planeta inteiro para cuidar. Está seguro. Ele aperta-a com tanta força quanto aquela com que aperta os olhos. Vê para dentro. Fecha todos os seus dedos tortos, brancos, com unhas, com cigarros impossíveis, com saias de crianças a rir, com o toque na pele da mulher filhos netos, aperta as saudades, aperta as mãos dentro das dela até doer. Crava as unhas na palma das mãos até doer. Respira até doer. Abre os olhos devagar. Vê os dedos finos, brancos, à volta dos seus. Um, dois, três. Quatro. Não está certo de serem dedos. Não está certo de serem seus. Doem-lhe, todos, os finos, os tortos, os delicados, os pequeninos.

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